Uma nova Abolição

Nos últimos tempos, não tem sido fácil cantar forte, cantar alto, deixar a tristeza pra lá e dizer que a vida vai melhorar, diante de tanta luta

“Houve sol, grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí a rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também entrei no préstito, em carruagem aberta. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio que me lembra ter visto.” O trecho é uma das tantas coisas que Machado de Assis escreveu sobre o 13 de maio de 1888 e os dias que se seguiram na antiga capital do país Brasil.

É engraçado me lembrar dessas palavras, porque, sempre que vou ao samba, sinto algo parecido: um delírio coletivo que consegue encantar até o mais encolhido dos caramujos. Já vi muitos caramujos saírem da concha, rebolarem até o chão e sambarem até o dia amanhecer.

Festa no quilombo São José da Serra comemorando o dia 13 de maio — Foto: Domingos Peixoto / Agência Globo

Escrevi aqui em 2022, no carnaval que foi celebrado em abril, que desfilar na Sapucaí foi a melhor experiência da minha vida até aqui: “É tão grande que não cabe nos olhos. É tão esplêndido que não cabe no corpo. As lágrimas rolam e você nem se dá conta. O coração fica a ponto de explodir. Você então usa toda a sua voz, toda sua energia tentando de alguma forma devolver aquilo que você está recebendo. A Sapucaí é um outro espaço-tempo, um túnel para outra dimensão, um buraco de minhoca em que pode acontecer de tudo no trajeto e, quando você chega do outro lado, você é outra pessoa.”

Eu continuo assinando embaixo que todo brasileiro deveria sair da maternidade com um vale-fantasia para usar em algum momento da vida. Agora, acrescento que todo ser humano deveria nascer com um vale-roda de samba.

Estive na última sexta na roda do Coletivo Gira, um coletivo de mulheres brasileiras e sambistas, em Lisboa, Portugal. O evento atualmente acontece em Marvila, e já aí foi estranho, porque o local se parece muito com a Zona Portuária do Rio.

Pelo menos três centenas de imigrantes brasileiros e de outras nacionalidades se juntam a uma minoria (pelo menos assim me pareceu) portuguesa para sambar durante quatro horas, em um delírio coletivo.

Nos últimos tempos, mesmo que eu disfarce bem, não tem sido fácil cantar forte, cantar alto, deixar a tristeza pra lá e dizer que a vida vai melhorar, diante de tanta luta. O Conjunto de Favelas da Maré passou por 13 dias de operações policiais na semana passada, com relatos e denúncias de tortura, cárcere, roubos, entre outras violações. Parece mesmo um delírio continuar vivendo dias tão difíceis em 2024, assistir ao crescimento de políticos e políticas criminosas.

A questão é que o próprio samba ensina que o mundo é uma grande gira e ouvir sambas que cultuam orixás, cantados por mulheres negras, à beira do Rio Tejo, me impressionou demais. Aquela sexta poderia ser um conto de ficção especulativa escrito por Machado de Assis em 1888, e muitos diriam que só mesmo na cabeça dele é que isso poderia acontecer.

Eu acredito porque, com certeza, aquele domingo ensolarado de 13 de maio também já foi uma utopia anos antes.

Sei pouco do futuro, mas faço questão de continuar imaginando, porque vejo com meus próprios olhos, assim como viu Machado, somos os sonhos mais loucos dos nossos ancestrais. E toda roda de samba é uma nova abolição.

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