Vamos crucificar a negra?

A versão que caiu em domínio público foi que a ministra incitou o racismo e colocou em risco a decantada harmonia racial do Brasil

Por Fátima Oliveira

Fui espectadora atenta do affaire ministra Matilde Ribeiro e do affaire rabino Henry Sobel, duas personalidades pelas quais tenho enorme e profundo respeito, decorrente da história de vida de ambos, cuja marca é o empenho pela democracia e pelos direitos humanos.

É nítida a disparidade de tratamentos da grande mídia nos dois casos. Também vale à pena mirar como cada setor de pertencimento de ambos reagiu.
Em que consistiu o affaire ministra Matilde Ribeiro? Nos 200 anos da proibição do comércio de escravos pelo Império Britânico, ela concedeu entrevista à rádio BBC de Londres (BBC Brasil).
BBC: “Como o Brasil se coloca no contexto internacional? O Brasil gosta de pensar que não tem discriminação e gosta de se citar como exemplo de integração. É assim que a senhora vê a situação?”

Ministra: “Chegaram os europeus numa terra de índios, aí chegaram os africanos, que não escolheram estar aqui, foram capturados e chegaram aqui como coisa. Os indígenas e os negros não eram os donos das armas, não eram os donos das leis, não eram os donos dos bens de consumo. A forma que encontraram para sobreviver não foi pelo conflito explícito. No Brasil, o racismo não se dá por lei, como foi na África do Sul. Isso nos levou a uma mistura. Aparentemente, todos podem usufruir de tudo, mas na prática há lugares onde os negros não vão. Há um debate se aqui a questão é racial ou social. Eu diria que é as duas coisas”.

BBC: “E no Brasil tem racismo também de negro contra branco, como nos Estados Unidos?”
Ministra: “Eu acho natural que tenha. Mas não é na mesma dimensão que nos EUA. Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou”.

A ministra fala de uma constatação, da vida como ela é! E destaca: “embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa.” A versão que caiu em domínio público foi que a ministra incitou o racismo e colocou em risco a decantada harmonia racial do Brasil. Fala-se que até os ataques aos estudantes africanos da UnB resultam da fala da ministra.

É infâmia demais! E, pior, que ela provocou um “desconforto” (qual?) no governo, tanto que integrantes do primeiro escalão silenciaram. Exceto o vice-presidente, que a defendeu, mas escorregou numa casca de banana. O silêncio fala…
A Secretaria emitiu nota em defesa da ministra, que a imprensa ignora e pede sua “cabeça”. Que o presidente Lula não sucumba à pressão, cujo alvo são as cotas raciais/étnicas. E o affaire rabino Henry Sobel?

Em nota, afirmou que “jamais teve a intenção de furtar qualquer objeto em toda a sua vida; está habituado a enfrentar crises e acusações de que possa se defender; e que não admite que tentem desqualificar os valores morais que sempre defendeu”.

Exige respeito. Está certo. A nota foi referendada pela Congregação Israelita Paulista. Não há um só judeu que se atreva a dizer o contrário. Nem os declarados desafetos do rabino. Isso tem nome: chama-se solidariedade. A mídia acatou a versão da não intencionalidade do ocorrido.

Fala agora de um suposto súbito distúrbio de comportamento. Como se permite que alguém com diagnóstico de diminuição do livre-arbítrio e da autonomia viaje sozinha? Minha pergunta é por que se acredita no rabino e tenta-se crucificar a ministra?

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