Especialistas comentam relatório da Anistia Internacional sobre atuação da PM
Por Pamela Mascarenhas, do Jornal do Brasil
O estudo da Anistia Internacional “Você matou meu filho! – Homicídios cometidos pela polícia militar no Rio de Janeiro” é um avanço em relação aos relatórios já divulgados sobre o tema, destacam sociólogos consultados pelo JB. Além de alertar para o cotidiano de extrema violência dirigida aos mais pobres e, principalmente, jovens do sexo masculino e negros, o relatório chama a atenção para a necessidade de reforma da atuação não só dos governos como também do Ministério Público e do Congresso. Por mais que a lógica de guerra contra o crime se dê fora dos limites do Rio de Janeiro, as violações são claramente excessivas no Estado, ressaltou o sociólogo Ignácio Cano.
O Relatório abrange homicídios na área do 41° Batalhão da PM, que inclui os bairros de Acari, Barros Filho, Costa Barros, Parque Colúmbia e Pavuna. A pesquisa aponta que a PM tem usado a força de forma desnecessária excessiva e arbitrária, desrespeitando normas e protocolos internacionais sobre o uso da força e armas de fogo; e que a não investigação e impunidade fazem com que policiais militares usem este registro administrativo como forma de encobrir a prática de execuções extrajudiciais.
O sociólogo Ignácio Cano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, acredita que o relatório é um avanço em relação aos relatórios tradicionais dos institutos de direitos humanos, por ir atrás dos casos de violação em vez de se pautar nas denúncias disponíveis. Ele pondera que a região selecionada não representa o conjunto do Rio de Janeiro, mas ainda assim ajuda a deixar clara a importância de políticas para reduzir a violência policial, “claramente excessiva” no Estado.
“Todos os atores têm que se engajar [para combater a violência policial] — a polícia, o governo do estado, o Ministério Público, o Judiciário, a sociedade, a imprensa”, apontou Cano, que salientou o esforço da Polícia Militar de desenvolver propostas nesse sentido, apesar de ainda não terem sido aplicadas.
O sociólogo e cientista político, Paulo Baia, professor da UFRJ, defende que o relatório é uma peça importante para reflexão das políticas públicas brasileiras pela sociedade. “São números contundentes, alarmantes, que mostram um cotidiano de muita violência, dirigida aos setores mais pobres, mais desfalidos da sociedade. Eles são vítimas de uma desigualdade social, e junto dessa desigualdade social há uma acumulação de violências contra eles”.
Juliana Farias, pesquisadora do PPCIS da UERJ, destaca que a Anistia acertou em seu relatório, ao destacar que, apesar do Estado valorizar a queda recente na taxa de homicídio, a ocorrência desse tipo de registro representa violações gravíssimas, que se perpetuam. “São execuções estra-judiciais, sumárias, e têm toda uma onda de valorização da queda dos índices de homicídio, especialmente a partir do final de 2008, quando se instala a primeira UPP aqui no Rio, só que a gente precisa olhar com cuidado esses números.”
Recomendações aos governos, MP e Congresso
O relatório traz uma lista de 20 recomendações, sendo 10 ao Governo Estadual, duas ao Ministério Público, cinco ao Governo Federal e três ao Congresso Nacional, para lidar com essas violações. As recomendações, avalia Ignácio Cano, são importantes, e algumas já estão sendo cogitadas pelo governo. “Mais importante é não encarar esse problema como se fosse exclusivamente de um ou outro policial isolado. Nós temos que encarar esse problema como um problema sistêmico, que precisa de intervenções”, explica Cano.
Baía também aprovou as recomendações ao Ministério Público. O professor espera que o Ministério Público, as secretarias de segurança, o Judiciário e todos os setores de governos as levem em conta na reformulação das políticas públicas. “Algumas estão sendo feitas, (…) mas não estão sendo tão eficazes no sentido de diminuir drasticamente a violência e, sobretudo, o foco onde está a violência, uma violência que está estratificada, concentrada nos mais pobres.”
Christina Vital, professora do Programa de Cultura e Territorialidades e do Departamento de Sociologia da UFF, por sua vez, destaca que as recomendações da Anistia aos governos, MP e Congresso são genéricas, “como devem realmente ser recomendações de relatórios abrangentes como esses”. O que faltou pontuar, analisa a professora, é que a corrupção policial é a grande responsável.
“Não são poucos os políticos que acusam estudiosos de produzirem belas teorias que na prática não se aplicam porque os policiais chegam e são recebidos com armas pesadas. No entanto, o que políticos desse escalão não falam, para agradar e assim manter as suas bases eleitorais, é que muitas vezes essas operações são fruto de vinganças e de desacordos entre turmas de policiais. Muitas vezes sabemos que uma equipe recebeu dinheiro e a outra não e esta ‘invade’ a favela”, alerta Christina.
Para Christina, o relatório poderia ser mais incisivo no combate à corrupção policial, que teria relação também com a melhoria na seleção de entrada no concurso para a PMERJ com a exigência de nível superior completo.” Deve-se reconhecer avanços na atuação do MPRJ, no comando da PMERJ e nos quadros da PCERJ e até mesmo em algumas iniciativas da gestão da segurança pública em nosso estado. Contudo, o contexto é ainda muito violento, precário, arbitrário.”
A pesquisadora Juliana Farias completa que as recomendações não são inéditas, e já vêm sendo feitas por outras organizações de direitos humanos. Mas não são cumpridas. “É como se o Estado ignorasse esse tipo de recomendação. Achei importantíssimo que a Anistia tenha destacado por exemplo a participação do Ministério Público nesse tipo de gestão dessas mortes que são cometidas por agentes do Estado, porque em geral se ataca muito apenas uma ponta, que é a polícia, que é um braço armado do Estado nas favelas, e sem dúvida é preciso chamar atenção para o tipo de arbitrariedade que vem sendo cometida por esse agentes, mas, para pensar nesse conjunto, na verdade é uma engrenagem genocida que está em funcionamento, e outros órgãos têm participação fundamental, e o Ministério Público é um deles, quando arquivam os casos.”
A violência policial no Rio e a resposta do Estado
O secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, criticou a divulgação do estudo. “Considero temerária e injusta a divulgação desse estudo de casos, num momento em que vemos os níveis de criminalidade caírem no Rio. A capa do estudo já cria um estigma antecipado do policial. Todos sabem que no Rio de Janeiro a diminuição da letalidade violenta é o principal fator para que um policial seja premiado no Sistema Integrado de Metas”, argumentou.
A Polícia Civil, em nota, reconheceu que existe demora nas investigações, mas por conta da dificuldade de se conseguir depoimentos de testemunhas que ficariam receosas com a represália de grupos criminosos. Ainda na nota, a Polícia Civil disse que encaminharia o estudo à Divisão de Homicídios.
O sociólogo Ignácio Cano lamentou a reação do secretário de Segurança, destacando que os grupos de direitos humanos têm entre seus papéis denunciar os casos de abuso. “[Beltrame] parece não entender o papel desses grupos, e também perdeu uma grande oportunidade de dizer ‘olha a gente reconhece que tivemos um problema, estamos trabalhando para melhorar isso’. (…) Acho que é uma reação negativa, é como tentar atacar o mensageiro.”
De acordo com Cano, o Rio, provavelmente, é o caso mais grave dentro do Brasil, apesar de casos de violência policial não acontecerem apenas no Estado. O diferencial, entretanto, é a intensidade com que isso acontece. “Como também a criminalidade se estrutura muito em função da ocupação territorial, o estado também reage a essa ocupação territorial. O Rio é essa guerra contra o crime, guerra contra o tráfico que foi se construindo ao longo de décadas. A UPP representa um contraponto, de certo ponto. Mas a gente ainda é herdeira de décadas de construção dessa política da guerra.”
Juliana também lamentou a declaração do secretário. “Mais uma vez uma representação de Estado, o secretário de segurança pública, não reconhecendo a política genocida que está em curso aqui no estado do Rio”. De acordo com ela, o que se vê em funcionamento é uma lógica genocida que está presente também em outras polícias, como do Estado de São Paulo e da Bahia, e que não enfrenta iniciativas de mudança,
Paulo Baía apontou para o não reconhecimento de que a violência, mesmo diminuindo, ainda está muito alta, o que sinaliza que esses esforços têm que aumentar. “O próprio Beltrame tem afirmado em várias entrevistas que a política de segurança não pode ficar sozinha, tem que ter políticas sociais, políticas de assistência, junto com as políticas de segurança, porque não basta só a polícia.”
Para Christina, por um lado, os agentes e gestores de segurança se sentem injustiçados pelos diferentes atores sociais que apontam para as mazelas da área de segurança obscurecendo os avanços que deveriam ser destacados. Por outro lado, militantes, estudiosos e ONGs nacionais dizem que não dá para esperar mais.
“As melhorias revelam-se insignificantes diante do número ainda muito alto de mortes (8 mil mortos no estado do Rio de Janeiro, dos quais 5 mil na cidade). A ineficiência destacada nesse e em outros relatórios é verificada na PM, mas está presente também da Polícia Civil que igualmente executa, é corrupta e ineficiente em suas investigações, aumentando a impunidade de criminosos”, diz a professora.
Embora reconheça esforços do secretário de segurança pública, sobretudo entre 2008 e 2012, para melhoria da PMERJ e da PCERJ, assim como do MP e da cúpula da PMERJ e da PCERJ, a professora da UFF salienta que os dados e ações produzidas por estudiosos e organizações devem ser respeitados por sua seriedade, por sua relevância social e também política. “Trata-se da perda de milhares de vidas e isso é urgente.”