Enquanto esperava atendimento na fila do exame de ultrassonografia, L*, uma universitária de 26 anos grávida, vítima de um estupro, recebeu uma caixa com absorvente e um livro do Novo Testamento. Segundo o relato da moça, o caso aconteceu no Hospital Estadual Pérola Byington, em São Paulo, onde a jovem se preparava para interromper a gravidez, procedimento permitido por lei nesses casos. O hospital é referência no atendimento a mulheres que sofreram violência.
O fato aconteceu nesta quarta-feira (18), conforme relatou a documentarista Juliana Reis, do projeto Milhas pelas Vidas das Mulheres. Desde 2019, ela vem orientando e ajudando vítimas que desejam realizar o aborto previsto em lei, incluindo em outros países. Em nota, a Secretaria estadual de Saúde “lamenta o desconforto.” Leia, no fim da matéria, a nota completa.
A deputada federal Sâmia Bonfim também foi às redes denunciar o ocorrido e pediu explicações ao hospital.
A Universa, Juliana conta que estava monitorando, virtualmente, o atendimento da universitária na unidade, quando ela escreveu para Juliana, via mensagem de texto: “Engraçado que me deram uma Bíblia na fila do ultrassom. Não só para mim mas para todas as mulheres que estavam lá. Não quis recusar pois todos estavam aceitando.”
Juliana disse que ficou furiosa com a mensagem: “Outra mulher poderia ter se sentido pressionada, saído de lá e feito um procedimento clandestino”.
A vítima, que prefere não falar sobre o ocorrido, seguiu com os exames dela, e passa bem, confirma Juliana informa a Universa.
“Só permitimos acesso de líderes religiosos no hospital se o paciente permitir”
Por telefone, o diretor do Hospital, Luiz Henrique Gebrim, explicou a Universaque a unidade recebeu muitos kits para doações durante a pandemia, com papel higiênico e absorvente, e para contribuir com a distribuição desse material, voluntárias que atuam na unidade começaram a repassar às pacientes o que havia nas caixas, incluindo a Bíblia.
Segundo ele, trata-se de idosas voluntárias que usam um uniforme rosa, que não é o do hospital, e que atuam ali servindo chás, promovendo bingos entre outras atividades para os pacientes. “Elas ficam mais na área da oncologia. E uma delas achou que poderia distribuir a Bíblia, mas a gente sabe que não pode.”
A assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação é garantida pela Constituição. Mas o paciente deve permitir essa visita, explica Gebrim. “Nós só permitimos acesso a líderes religiosos no hospital se o paciente, e em estágio terminal, permitir. As famílias geralmente pedem mesmo um conforto espiritual. A gente não pode impedir. Mas para isso, a direção precisa autorizar.”
“Atividade religiosa não é estranha nos nossos serviços de saúde”
Ativista do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, a psicóloga e mestra em Ciências da Religião Rosângela Talib atenta que a atividade religiosa não é estranha nos serviços de saúde, mas reforça que o estado deve ser laico. “Se vai distribuir o símbolo de um, tem que distribuir o de todos. Você tem que respeitar a individualidade do outro.”
“A questão se complica porque a pessoa que está lá para fazer interrupção da gravidez pode receber isso bem, achar que é um sinal positivo, ou interpretar como algo ruim as coisas não podem se misturar”.
Hospital é alvo constante de protesto
Por ser referência no atendimento a mulheres vítimas de violência e realizar o aborto, o Pérola Byington é alvo frequente de grupos pró-vida.
Em 2019, religiosos contra o aborto montaram uma tenda em frente à unidade, e quem passava pelo local via reproduções de fetos, bebês, terços pendurados em pescoços, cruzes nas mãos dos manifestantes.
Tratava-se da campanha “40 dias pela vida”, uma iniciativa importada dos Estados Unidos para uma quarentena de reza contra o direito à interrupção de gestação.
Por causa disso, ativistas pró-aborto legal também montaram uma tenda no mesmo local. O Católicas pelo Direito de Decidir fez um banner em que se lia “na luta pelo Estado laico e contra os fundamentalismos”.
“Estamos falando de vidas, principalmente de mulheres negras e pobres que são as maiores vítimas de violência e da falta de acesso aos serviços. A gente tem um serviço de excelência no Pérola, e questões como essas atrapalham o andamento do serviço e os profissionais”, reforça Rosângela.
Nota da Secretaria estadual de Saúde
“O Hospital Pérola Byington lamenta o desconforto e repudia qualquer atitude contrária à liberdade de consciência e de crença quanto ao caráter laico de instituições públicas, previstas na Constituição.
Para que situações como esta não se repitam em nenhum setor do hospital, a direção do Hospital Pérola Byington realizou nova reunião com profissionais e voluntários do setor de humanização e capelania hospitalar, reforçando a obrigatoriedade do cumprimento das normas estabelecidas pelo serviço, que respeita às escolhas individuais de suas usuárias e, justamente por isso, não permite a distribuição de panfletos ou livros como o citado pela reportagem em qualquer setor, considerando inadmissível qualquer coação às suas pacientes.
Cabe acrescentar que, segundo a direção, a distribuição indevida ocorreu no setor de ultrassom que atende pacientes acompanhadas por diversas frentes de atendimento, incluindo a Oncologia e mulheres assistidas no Ambulatório de Violência Sexual do Programa Bem me Quer.
O hospital lembra a todos que disponibiliza Ouvidoria para acolher qualquer paciente ou usuário, acolhendo dúvidas e queixas. Os contatos podem ser feitos pelo e-mail [email protected] e telefone (11) 3232-9021 ou 9000.”