Vote contra o racismo ambiental e por políticas de adaptação climática antirracista

Eu nasci e cresci em Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo. Periferia rural, longe do centro, repleta de cachoeiras, território indígena, muitos terreiros de candomblé e água, muita água. Minha família e meus amigos ainda moram lá. Gosto de dizer que no mundo em que eu nasci cabe uma imensidão de cantos e de gentes. Tentamos manter a beleza e a generosidade da natureza, mas, ao mesmo tempo, enfrentamos um território tomado por um coronelismo perverso na política.

Da infância à vida adulta, acompanhei ali as movimentações políticas desonestas, planos diretores negociados e a resistência da população em busca de qualidade de vida.

O que mudou?

Eu poderia recitar clichês insuportáveis, mas também não aguento mais. As cidades precisam ser justas; precisam nos caber e acolher. Precisamos de segurança para andar a pé, de ar puro, água de qualidade, casas para morar e coleta seletiva. A lista de necessidades é extensa e parece simples, mas as demandas básicas das cidades nunca foram prioridade. A especulação, a remoção, o desrespeito e a segregação são como a sociedade planejou nossas cidades.

Recentemente, assisti ao documentário “Favela do Papa”, de Marco Antônio Pereira, que retrata a resistência dos moradores da Favela do Vidigal contra uma ordem de remoção, um capítulo importante da história do Rio de Janeiro nos anos 1970. Por meio de imagens de época e entrevistas, o filme ilustra a confluência de entidades e personalidades em defesa da permanência dos moradores em seu território. Ele me atravessou, porque mostra como se produzem desigualdades e racismo nas cidades. Quem tem direito a viver em lugares com qualidade ambiental e social?

As eleições municipais nos alertam sobre a importância de escolher vereadores e prefeitos dispostos a retirar o risco e não as pessoas, priorizando a vida na construção das cidades. Não podemos mais aceitar cidades que geram desigualdades, aprofundam o racismo e não oferecem segurança para caminhar ou respirar.

As cidades precisam de saneamento básico

As mudanças climáticas contribuem para o racismo ambiental nas cidades. Segundo o Censo 2022, as restrições de acesso ao saneamento básico eram mais evidentes entre jovens, pretos, pardos e indígenas. A população de cor ou raça amarela teve maior acesso à infraestrutura de saneamento, seguida pela de cor ou raça branca.

De acordo com a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no país resulta da coabitação, precariedade e ônus excessivo com aluguel. Em todas as regiões, o maior percentual do déficit habitacional está em domicílios chefiados por mulheres. Além disso, pessoas pretas e pardas são as mais afetadas pela coabitação e precariedade habitacional, representando cerca de 66% do total. É crucial destacar que os domicílios chefiados por pessoas negras concentram 74% do déficit relacionado à precariedade.

A agenda ambiental e de segurança climática será central para os direitos humanos nos próximos dias, meses e anos. Não temos mais tanto tempo para adaptar as cidades. A Rede Por Adaptação Antirracista, composta por grupos de mais de 15 estados do Brasil, articula políticas de adaptação climática que considerem os efeitos do racismo ambiental. O conceito de adaptação antirracista, formulado por essa rede, tem sido utilizado para incidência junto a parlamentares em diferentes níveis e foi enviado aos candidatos a prefeituras em várias cidades, enfatizando que as políticas urbanas devem enfrentar as desigualdades raciais.

“Adaptação climática antirracista é o enfrentamento às desigualdades raciais, de gênero, geracionais, sociais, regionais e territoriais, a partir de um conjunto de políticas públicas estruturantes, interseccionais e intersetoriais. Essas políticas devem ter como foco assegurar o bem viver, a proteção das vidas vulnerabilizadas e a conservação dos biomas, através de medidas estruturais e emergenciais.

As políticas de adaptação antirracista, em sua concepção, planejamento, financiamento, implementação, monitoramento e avaliação, devem incorporar os saberes, as soluções e práticas populares, ancestrais e tradicionais, e as especificidades dos territórios.

Sua efetivação visa reduzir os impactos desproporcionais da crise climática e dos eventos climáticos extremos, que afetam principalmente as populações negras, indígenas, quilombolas, tradicionais, periféricas e faveladas, no campo, na cidade, na floresta e nas águas.”

Várias iniciativas, como o Vote pelo Clima, estão em andamento com candidatos que podem nos ajudar a sonhar cidades melhores. Essa plataforma conecta você a candidaturas comprometidas com a construção de políticas para enfrentar a crise climática. Votar em candidatos comprometidos com direitos humanos é nossa saída mais urgente para o que estamos vivendo. 


Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).

+ sobre o tema

Neca Setubal defende taxação da elite e se revolta contra PL do Aborto: ‘Absolutamente inaceitável’

A primeira surpresa na autobiografia da educadora Neca Setubal, “Minha escolha...

Lula faz acordo sobre base de Alcântara e tenta encerrar 40 anos de disputa

O governo e entidades quilombolas fecharão um acordo sobre...

Quase 6 em cada 10 novos empregos são ocupados por beneficiários do Bolsa Família

Quando foi chamado para uma vaga de faxineiro, em...

para lembrar

“A escravatura é legítima”, dizia Fernando Pessoa. E cria polémica na CPLP

Escritos de Fernando Pessoa parecem apoiar a escravatura aos...

Aliado de Serra declara voto em Plínio após debate na TV

Roberto Jefferson critica tucano e promete candidato do PTB...

Diversidade Cultural, esquecida da Justiça – Por: ELA WIECKO V. DE CASTILHO

Apesar das conquistas da Constituição e de convenções...

A diferenças entre os atentados na França e na Nigéria

Minha intenção não é comparar os atentados, e sim...

Desigualdades e identidades na política brasileira

Há quem acredite que as dificuldades eleitorais da esquerda residem em uma suposta centralidade da agenda dita identitária. No entanto, há evidências para outra...

Extrema direita usa gramática religiosa em projeto de radicalização, diz Ronilso Pacheco

A Igreja foi uma peça fundamental do colonialismo europeu e da escravização de africanos, mas a espiritualidade cristã pode se comprometer com um projeto de...

Em marcha pelo fim da violência contra as mulheres, do racismo e da extrema direita

A Marcha Mundial das Mulheres se manifesta a respeito dos acontecimentos de 6 de setembro de 2024, quando o então ministro dos Direitos Humanos,...
-+=