A ministra Macaé Evaristo assumiu o Ministério de Direitos Humanos no meio de um trauma, que eclodiu no meio dos movimentos sociais, e ao mesmo tempo com muitas pautas. Em entrevista concedida a mim na GloboNews, ela cita pautas importantes que serão tocadas pelo ministério como o olhar para a infância e a educação, especialmente porque começou sua carreira como professora. “Não podemos considerar que temos uma democracia se as crianças não estão efetivamente protegidas”.
Haverá uma atenção para os idosos, e os indígenas. Ela trabalhou com educação indígena. Ela quer que o ministério torne concretas as conquistas em direitos humanos. Perguntei se ela há havia sido discriminada por ser negra e ela disse que por diversas vezes. “Uma pessoa negra todo dia toma uma dose de racismo”. Abaixo a entrevista na íntegra que foi ao ar na Globonews e pode ser vista no Globoplay.
Miriam: Eu queria começar perguntando sobre o trauma. Como foi para os nos movimentos sociais, negro e feminista, esse conflito que surgiu com a denúncia contra um homem negro, ex-ministro, por assédio sexual no qual uma das vítimas é uma ministra também negra. Como foi o impacto no movimento negro?
Macaé Evaristo: Gostaria de relembrar o que a Lélia Gonzalez, uma grande socióloga, estudiosa e ativista do movimento negro. Ela é uma das primeiras intelectuais que vão trazer para o debate de que o fato de que o machismo também não escapa aos homens negros. Ao mesmo tempo, ela questiona o movimento feminista por não entender e não olhar para as mulheres negras. Muitas vezes, falamos disso teoricamente, mas não construímos mecanismos para operacionalizar institucionalmente essas questões. Acho que este é um momento de elaboração. O Brasil precisa compreender essas dinâmicas sociais e fortalecer as instituições para que saibam lidar com fenômenos dessa natureza. Não é jogando para debaixo do tapete, nem criminalizando. O primeiro passo é garantir espaços efetivos e objetivos para que as pessoas possam fazer suas denúncias. Também é necessário garantir sigilo às vítimas e aos acusados, além de um processo justo para apurar responsabilidades. Isso é um desafio tanto para a sociedade quanto para as instituições. O movimento negro e o movimento feminista sofreram neste momento. Minha primeira fala no ministério foi: “temos que fazer desse luto, luta”. Vamos aprender e trabalhar nossas instituições para que possamos coibir práticas como essa e, se ocorrerem, saibamos como tratar devidamente.
É chocante que, num governo com sensibilidade para essa pauta, com um ministério voltado para as mulheres, não tenha havido espaço para escuta e se tenha chegado a este ponto. Como aumentar a capacidade das organizações de ouvirem as mulheres?
Primeiro, as instituições precisam ouvir as mulheres e levar a sério o que elas falam. Isso deveria bastar. Um fenômeno que vemos é que, mesmo quando a mulher fala, não é o suficiente, não serve como prova. E isso se conecta a outra pauta do ministério: a das infâncias. Muitas vezes, as crianças falam e sua fala não é suficiente para sensibilizar as instituições. Essa é uma construção social que reflete a não compreensão das mulheres, crianças e população negra como sujeitos de direitos. Precisamos superar isso. Isso demonstra o patrimonialismo e racismo institucionais que se reproduzem.
A jornalista Ana Carolina Diniz, do blog, ponderou que nesse caso há o temor de reforçar o racismo contra os homens negros. Ela lembrou que quando aconteceu na Caixa Econômica foi só o presidente da Caixa e não o conjunto dos homens brancos. Quando envolve um homem negro reforça o estigma contra o homem negro. Eu achei essa fala muito apropriada e queria te ouvir sobre isso. Como evitar que isso reforce o racismo?
Acho perfeita essa avaliação dela. E a gente pode perceber como é o tratamento midiático sobre o tema. Historicamente, os homens negros sempre foram colocados no lugar de quem deve ser temido, de monstruosidade. O racismo individualiza e, ao mesmo tempo, generaliza para toda a coletividade. E, quando pensamos no genocídio da juventude negra, isso se torna muito grave. Adolescentes negros são vistos de maneira desumanizante. Nossa luta é pelos direitos humanos e, principalmente, por humanizar as relações. Esse é um caso específico e não pode ser generalizado para todos os homens negros ou mulheres negras.
A senhora é professora e nessa profissão construiu sua carreira e iniciou sua militância. Como as crianças serão tratadas no Ministério dos Direitos Humanos sob seu comando?
O direito da infância terá um papel muito importante. A pauta das infâncias hoje se articula com questões que antes não eram discutidas, como os grandes desastres ambientais. Quando comecei a gente lutava pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. E depois pelo combate à fome. Toda crise afeta primeiro as crianças, que são as mais desprotegidas. Também precisamos discutir o ambiente virtual, um drama atual para as famílias e escolas. E não temos nada de regulação. Como lidar com crianças passando horas nas telas? Essa é uma questão que precisamos debater no Brasil.
O ambiente virtual será o futuro das crianças, mas também apresenta riscos. O caminho pode ser a regulação.
Precisamos falar sobre isso. As crianças têm direito à natureza. Muitas delas não têm direito a brincar na rua, nos parques, não têm quintais para brincar, principalmente nas periferias. Precisamos olhar para as infâncias. E enfrentar a exploração sexual, que ainda existe no Brasil. Não podemos considerar que temos uma democracia se as crianças não estão efetivamente protegidas.
Quais são suas outras prioridades em sua agenda?
O Ministério possui vários conselhos, o que permite a construção de políticas com participação social. Também temos a pauta da população idosa, que está crescendo no Brasil. Isso implica novas formas de pensar a sociedade e o cuidado com os idosos, que geralmente recai sobre as mulheres. Precisamos avançar nesse entendimento e discutir políticas para esse segmento. Hoje temos um envelhecimento muito diferente do que tínhamos antes. Minha avó morreu com 58 anos e eu achava muito velhinha. E hoje é completamente, temos uma população acima de 60 anos que não é “idosa”. Precisamos trazer para o debate esses recortes etários.
O Ministério também lida com questões internacionais, como denúncias de violações de direitos humanos no Brasil. Temos muitas agendas a tratar. Acho que também é um debate importante que o nosso Ministério vai tratar. O Ministério também tem uma responsabilidade muito grande, que é trabalhar todas as contendas que o Brasil enfrenta no âmbito da ONU, as denúncias que o país tem sobre violação de direitos, acompanhar, prestar contas, pagar quando é o caso do Brasil ser penalizado. Tem muitos temas, muitas agendas desse ministério, questões que a gente precisa tratar.
Vou agregar mais um ponto, que são os indígenas. Apesar de termos o Ministério dos Povos Indígenas, a característica desse ministério é a transversalidade. Ele toca em várias questões e dialoga com todos os outros ministérios. A proteção dos indígenas e das infâncias indígenas cruza duas pautas que te são caras.
Trabalho com educação escolar indígena há muitos anos, mais de 20 anos. A deputada Célia Xakriabá foi minha aluna. Eu tenho muito orgulho. Essa é uma agenda fundamental. Ainda não estive com a ministra Sonia Guajajara, mas já a procurei. Vamos fazer uma agenda para pensar em como atuar coletivamente nessa pauta. Há muitas coisas que precisamos compreender.
Temos políticas que são adequadas quando pensamos nas infâncias em áreas urbanas. No entanto, essas políticas, muitas vezes, não são eficazes quando pensamos em crianças em contextos indígenas. É preciso ouvir essas comunidades e entender que muitas populações indígenas no Brasil vêm sofrendo intrusões em suas terras, o que coloca em risco as crianças. Precisamos compreender que outro ponto da nossa agenda dialoga com a ministra Sonia: os conflitos agrários e as infâncias nesses contextos. Quais mecanismos criar para proteger essas crianças?
Em Minas Gerais, há casos dramáticos, inclusive conflitos com mineradoras e povos que ainda não têm suas terras demarcadas.
Em Minas Gerais, temos uma situação muito grave com a população Maxakali. Muitas vezes, eles estão espalhados pelo estado. Esse povo é muito sofrido, mas, ao mesmo tempo, muito guerreiro. Mantém sua língua originária, sua forma própria de organização e vida. No entanto, enfrentam situações de extrema pobreza, fome e altos índices de mortalidade infantil. Precisamos de uma agenda que articule nosso ministério, o de Sonia Guajajara, a Funai e a Saúde, para garantir efetivamente os direitos dessas infâncias.
Vou incluir mais um ministério: o Ministério do Meio Ambiente, pois o meio ambiente, pela Constituição, é um direito humano. Estamos vivendo uma tragédia ambiental e climática no país.
Acho que todos no Brasil estão preocupados. As pessoas estão percebendo a tragédia provocada não só por nossas escolhas de desenvolvimento, mas também por decisões imediatistas, como achar que queimar a terra melhora o solo. É realmente muito preocupante.
Quando pensamos em desastres ambientais, em Minas temos mineradoras, muitos conflitos entre comunidades tradicionais e essas empresas. Pessoas são deslocadas em massa de seus territórios, e, no meio disso, as crianças ficam sem escola, sem acompanhamento de saúde. Mulheres ficam sem acesso ao pré-natal, sem direito a um parto humanizado.
A agenda de direitos humanos precisa ser trazida para o cotidiano das pessoas. Muitas vezes, parece que esse debate flutua sobre a vida comum, mas os direitos humanos envolvem coisas muito básicas: o direito à liberdade, à alimentação saudável, à moradia. Falamos aqui também sobre a população de rua, o direito de tomar banho, escovar os dentes. Hoje, temos um sistema internacional de direitos humanos que atua para garantir que ninguém seja privado desses direitos. Recebo essa tarefa do presidente Lula com muita responsabilidade. Fiquei muito honrada com o convite, pois acredito que meu nome foi escolhido porque sou uma pessoa da base, da comunidade. Sei muito bem o que é não ter garantias básicas de existência, e sempre trabalhei para que as pessoas tivessem acesso a elas.
Queria falar um pouco da sua trajetória. Li que a senhora se define como alguém cuja família apostou na educação como forma de ascensão social. A senhora também enfrentou a discriminação racial?
Diversas vezes. Costumo dizer que, no Brasil, uma pessoa negra todo dia toma uma dose de racismo. O que muda o tamanho da dose. Às vezes é um copinho, outras vezes é aquele copo que os mineiros usam para tomar uma cachacinha, e, em alguns dias, é um copo duplo. A gente não escapa do racismo, o racismo está na nossa pele, e, muitas vezes, as pessoas nem percebem que estão sendo racistas. “Você é muito competente, você não precisa falar que é negra”. Mas eu sou negra. Quando ocupo cargos, é difícil para as pessoas compreenderem que uma mulher negra possa estar em determinadas posições. Você é sempre vista com desconfiança, é questionado sobre sua competência, e dizem: “Ela está ali porque é negra”. Pode até ser, mas também estou aqui porque tenho um currículo que me habilitou.
Sou professora, assistente social, fui diretora de escola, gerente de programas educacionais dentro de uma secretaria da educação, secretária municipal e estadual de Educação, secretária de Diversidade, Inclusão e educação continuada do Ministério da Educação, vereadora, deputada e, agora, ministra de Estado.
Tenho muito orgulho da minha trajetória e, principalmente, da minha mãe. Ela ficou viúva quando eu tinha 10 anos, e minha irmã caçula, apenas um mês. Minha mãe fez uma escolha: acontecesse o que acontecesse, ela ficaria com as filhas. Muitas vezes, foi abordada por pessoas que sugeriam que deixasse uma de nós morar com elas. E a gente sabe o que isso significa. E a segunda escolha foi apostar na educação como meio de transformar nossas vidas. Por isso fui trabalhar com educação, e acredito que os direitos humanos têm uma pauta enorme nesse campo. É isso que produz a transformação. Essa é a energia que quero trazer para o ministério: responsabilidade, transparência, diálogo e realização. Eu acho que esse lugar aqui pede que a gente concretize, que a gente tenha agendas pragmáticas que consigam chegar e mudar a realidade concreta da vida das pessoas
Além disso, ainda tem uma prima chamada Conceição Evaristo.
Ela é uma das minhas grandes inspirações. Conceição foi a primeira mulher negra da nossa família a nos inspirar. Ela estudou, foi a primeira que estudou. Ela foi descoberta muito depois, mas, para nós, já era uma referência. Tenho uma paixão enorme por ela.