Primeiro domingo de setembro, ano 2011, século XXI, após jogo do Flamengo, que perdeu mais uma. Família em volta da televisão, no ar, o indefectível Domingão do Faustão, com seu quadro Dança dos Famosos. E eis que o ator global Rodrigo Lombardi, jurado do programa, sai com esta pérola: “Tem um cara que eu sou muito fã desde criancinha, e acho que foi ele que me fez ser artista, juntamente com meu pai. Era um cara que na sua época era negro, caolho, um metro e cinquenta de altura, chamado Sammy Davis Junior, que, quando entrava no palco, saía com dois metros de altura, loiro de olhos azuis”.
Fiquei paralisado, não acreditava no que estava vendo e ouvindo. Mas, era verdade sim. No horário nobre de domingo, o preconceito contra os negros manifestava-se de forma explícita, sem rodeios. Depois recomposto, comentei com os familiares – vocês viram o tamanho do preconceito desse rapaz? E mais refeito, passei a raciocinar com mais tranquilidade e me dispus a escrever sobre o tema, afinal este é o exemplo mais tosco e paradoxalmente mais bem acabado do racismo à brasileira.
No dia seguinte, fui ver nos jornais, nos programas de televisão e artigos se havia tido alguma repercussão. E nada. Afora alguns gatos pingados na internet, nenhuma palavra sobre o assunto. E é aí que identificamos a perversidade do racismo à brasileira. O silêncio da conivência, da insensibilidade e do pouco caso com a questão da igualdade em nosso país. Por muito menos que isto, a então ministra da Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, foi execrada e posteriormente defenestrada do cargo. E o que ela fez? Apenas verbalizou o sentimento das vítimas do racismo no Brasil. Disse ela, à época, que seria normal que quem foi discriminado não necessariamente teria que perdoar seus agressores. Lembro-me que foi um escândalo, um Deus nos acuda, o assunto teve chamada de capa nos jornalões, manchete no Jornal Nacional, e a ministra sofreu uma acusação fulminante de estar propagando o ódio racial no Brasil.
No entanto, um ator de sucesso na televisão, num programa de grande audiência, exercita o seu racismo na plenitude e nada acontece. É a velha naturalização do racismo no Brasil, afinal, é mais do que normal, para uma boa parte da sociedade brasileira, que talento, inteligência e capacidade sejam virtudes intrínsecas aos brancos e preferencialmente loiros de olhos azuis, conforme afirmou o ator global. Portanto nada de novo front, ele nada mais disse do que o óbvio. Quanto ao preconceito e discriminação contida na afirmação, ora bolas, a intensão dele era fazer um elogio, além do que estava emocionado com a morte do seu avô. Daí, vamos desculpá-lo. É ridículo, mas é assim mesmo que a democracia racial funciona em nosso país. Às avessas.
Lembrei-me perfeitamente que no meu primeiro artigo escrito para Terra Magazine, em fevereiro deste ano, intitulado Galã da Cidadania, onde abordei a polêmica sobre o fato de o ator Lázaro Ramos ser questionado enquanto galã, afirmei algo que vale a pena repetir, por continuar tão válida quanto: é a manifestação velada ou não do quanto estamos impregnados de preconceitos, em particular no campo estético, da qual deriva a compreensão de que determinados símbolos da nossa sociedade só podem ser representados por brancos.
Por isto mesmo, temos que reagir, nos indignar, protestar de forma veemente com esta naturalização do preconceito e do racismo no Brasil. Um ator, ainda mais de uma rede poderosa como a Globo, que forma e informa milhões de cidadãos brasileiros, precisa ter mais responsabilidade com o que fala e respeitar a gigantesca contribuição que os afrodescendentes brasileiros ou não deram e continuam dando para o mundo, em particular para a cultura.
Axé!
Zulu Araújo é arquiteto, produtor cultural e militante do movimento negro brasileiro. Foi Diretor e Presidente da Fundação Cultural Palmares (2003/2011).
Fonte: Terra