Luiz Eduardo Soares: a experiência real do Rio é marcada pela segregação, racismo e brutalidade do Estado

Às vésperas do Jogos Olímpicos, o antropólogo e escritor desafia os clichês sobre a Cidade Maravilhosa, a começar pela praia como espaço de socialização democrática. Em Rio de Janeiro – histórias de vida e de morte, ele mostra como a violência e a corrupção afetam os moradores da região metropolitana do Rio

Por Leonardo Fuhrmann Do Portal Fórum

A paixão de Luiz Eduardo Soares pelo Rio de Janeiro certamente não renderia mais um dos sambas ou marchinhas de exaltação à vida na cidade que é o cartão postal do Brasil. O problema vai além da música, embora o autor revele ao longo do seu novo livro, Rio de Janeiro – histórias de vida e de morte (Companhia das Letras), que não aprendeu a tocar violão na infância por conta da restrição do pai àquele instrumento de “malandro, vagabundo e desocupado”. O pequeno Soares teve de iniciar suas aulas de música pelo aristocrático violino.

Mas isso não o impediu de depois se aproximar, dessa vez como pesquisador e autoridade pública da área de segurança, da história daqueles que são estigmatizados como “malandros, vagabundos e desocupados”. E – nessa imersão no universo de negros, semi-analfabetos e moradores de favelas e outras comunidades carentes – não aparecem os “encantos mil” da Cidade Maravilhosa. A violência e a corrupção atingem o poder público, mas também são legitimadas em maior ou menor grau por uma sociedade que age de forma racista e segregacionista.

Dos gabinetes de Brasília, o antropólogo mostra a sua decepção com o que considera falta de ousadia do governo petista. Suas críticas aos líderes de seu antigo partido são reforçadas pelas marcas deixadas na campanha de 2014, quando, na condição de militante da Rede, Soares esteve pela segunda vez ao lado de Marina Silva em uma disputa presidencial. Ainda assim, reconhece os impactos positivos de políticas como as cotas e a inserção social pelo consumo, como medidas de empoderamento. E, como professor, revela que sua maior esperança em uma sociedade política e socialmente melhor vem justamente da experiência de conviver com estudantes criados em favelas e que chegaram à universidade.

Fórum – Você fala em seu livro sobre a imagem idealizada do Rio. Os Jogos Olímpicos do ano que vem não devem reforçar esse discurso?

Luiz Eduardo Soares – Há uma tendência de os clichês se reiterarem como narrativa. Isso culmina na internacionalização do hedonismo e do convívio fraternal, características que contrariam a experiência real de quem vive na cidade, que é de violência, brutalidade do Estado e com uma marca muito forte de racismo. No Rio, as manifestações de junho de 2013 tiveram esse ingrediente de rebelião contra o clichê, além da degradação da representatividade e da crítica à qualidade do serviço público. Foi a desconstrução dessa imagem que é quase irônica, cínica.

Fórum – Passados mais de dois anos, como você vê essas manifestações e seus resultados?

Soares – O que houve em junho de 2013 foi extraordinário, pois abriu a possibilidade de protagonismo do cidadão. Foi um momento de retomada, redescoberta. Graças à comunicação eletrônica, foi possível fazer isso de maneira acêntrica. Apesar da manutenção dos problemas relacionados ao racismo, o Brasil teve uma expansão da cidadania, com a queda dos índices de pobreza. É aquela história de que o protesto só é possível porque as condições de vida das pessoas melhoraram, a ponto de elas passarem para novas reivindicações. Muita gente despreza essa inclusão pelo consumo, mas eu acho que não é uma experiência que se esgota nisso. Existe um significado psicológico. Aliado à política de cotas, a expansão do crédito potencializou a autovalorização e o empoderamento. Na miséria, não há busca de protagonismo, apenas luta pela sobrevivência.

Fórum – Mas depois vieram manifestações com a defesa da volta da ditadura, por exemplo. O que deu errado?

Soares – Por sua natureza, essas manifestações soltaram também todos os demônios, até pelas novas linguagens em um ambiente precariamente politizado. As pessoas se uniram mais em torno de reivindicações, mas não de proposições. A crítica aos políticos que traíram a representatividade teve como impacto o crescimento da negação da atividade política, em um ambiente que já era despolitizado.

Fórum – Algum outro tipo de manifestação desse período lhe chamou a atenção?

Soares – Os rolezinhos são uma experiência que redefiniu a geopolítica das cidades. A ousadia da performance dos jovens negros e da periferia que eram excluídos desses centros de consumo por um decreto tácito. Muitas vezes, eram acompanhados por um segurança quando entravam nesse ambiente, como forma de explicitar o racismo e a segregação.

Fórum – E como você vê a reação da classe média a essa mudança?

Soares – O episódio do adolescente negro espancado, despido e acorrentado pelo pescoço a um poste na Praia do Flamengo, ocorrido em fevereiro do ano passado, teve uma mensagem semiótica potente. Além da alusão à atuação do grupo racista norte-americano Ku Klux Klan, prender pelo pescoço simboliza calar. Quando não se pode usar a voz, ficamos na materialidade animal do corpo nu. E, ao negar o movimento, o ato tenta restabelecer a volta ao velho mapa da segregação. Isso vem acompanhado de um processo de violência relacionada ao ódio, de manifestações classistas e racistas. O processo eleitoral não foi capaz de dialogar com os bichos que estavam soltos na sociedade. Os canais partidários só serviram para acirrar a imagem negativa da política. Isso em uma sociedade que já vive hoje um processo de desideologização.

Fórum – A detenção arbitrária de adolescentes pobres e negros que iam para a praia é a estatização dessa reação da classe média?

Soares – Não chega a ser uma estatização desse caso, mas é algo neste sentido, com uma mediação. Foram atos arbitrários e segregacionistas para evitar que os jovens negros chegassem às praias da Zona Sul. Eles foram apreendidos sem flagrante de nada, levados à força. Foi uma arbitrariedade, baseada em suposições. E, apesar da inconstitucionalidade, foi tratado pela sociedade como algo razoável e eficiente.

O problema não é recente. No começo dos anos 1980, o então governador Leonel Brizola (PDT) foi bastante atacado por ter ampliado o serviço de ônibus nos finais de semana das periferias para as praias. Isso foi antes mesmo dos primeiros arrastões, que aconteceram na década seguinte. A classe média cultiva uma aversão ao povo nas praias, cultuada em atitudes racistas. A sociedade do Rio mantém esse espírito segregacionista e aceita esse comportamento da polícia como se fosse apenas um conjunto de decisões técnicas, aceitáveis. A atitude desses jovens, como bem disse o sociólogo Marcelo Burgos, é uma auto-degradação. É um jogo armado em que os grupos atuam conforme um papel definido, que reproduz códigos racistas.

Fórum – A agressão a uma juíza dentro de um batalhão prisional reacende a discussão sobre a atividade das milícias. Por que esse tema estava esquecido?

Soares – O assunto das milícias saiu do senso comum nacional por não estar presente nos noticiários, mas não é algo distante da realidade dos cariocas. O prefeito Eduardo Paes (PMDB) tentou minimizar o assunto, como já fazia o Cesar Maia (DEM), que negava a existência delas e alegava se tratar de grupos de autodefesa. Os milicianos participaram da campanha do governador Sergio Cabral (PMDB) em 2006. Tanto que o Fernando Gabeira (PV) foi proibido de mostrar na campanha de 2010 as imagens do governador, que seria reeleito, ao lado deles.

Houve uma mudança na visão sobre as milícias, que passaram a ser vistas como um problema para a sociedade só depois daquele episódio em que uma equipe de reportagem do jornal O Dia foi feita refém e torturada dentro de uma área dominada por eles [a favela Batan, em 2008]. Antes disso, só a Vera Araújo na imprensa estava tratando do tema. Foi ela inclusive que usou o termo “milícias”, eu chamava de “polícia mineira”. A partir desse caso, foram criadas as condições para que fosse instalada a CPI pedida pelo Marcelo Freixo (PSOL), da qual ele foi relator.

Fórum – E por que essa política não se manteve?

Soares – Não deixa de ser curioso que a grande ação contra as milícias tenha vindo do governo Cabral, graças à independência que o secretário José Mariano Beltrame deu ao delegado Claudio Ferraz, da delegacia de combate ao crime organizado. Antes dele, apenas dois milicianos haviam sido presos. Em quatro anos, ele conseguiu a prisão de mais de 480 integrantes desses grupos. Essa ação veio em um momento importante, porque era quando os líderes das milícias se preparavam para entrar diretamente na política partidária e não mais por acordos firmados com determinados candidatos.

Mas, em 2010, a invasão do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro mais uma vez mudou a agenda da segurança pública. O discurso voltou a ser aquele da polícia como representante do bem contra o mal, ainda mais com a agenda positiva das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). Mas a polícia continua envolvida com o crime organizado e o tráfico de drogas e cometendo brutalidades contra setores específicos da sociedade, como o genocídio nas favelas. Não se trata de uma acusação genérica, conheço muitos policiais sérios, que não atuam com violência nem se envolvem em corrupção, apesar dos baixos salários. Mas temos de admitir que não são casos isolados, há um segmento numerosamente expressivo dentro da polícia envolvido com essas práticas.

Fórum – No livro, você relaciona as práticas de corrupção da polícia à violência das facções criminosas que praticam o tráfico de drogas. A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o porte e o consumo de drogas pode ter algum impacto nessa mudança?

Soares – Existe a tendência de que o tráfico de drogas abandone essa estratégia de manter domínios territoriais e exércitos, que é absolutamente irracional, e passe a trabalhar mais com o delivery, como acontece em qualquer sociedade democrática do mundo. A decisão do Supremo vai ajudar nesse sentido. Mas ainda será algo tímido. Sou um defensor da legalização desde a época em que essa proposta não era aceita nem como algo a ser debatido. Hoje, temos avanços, mesmo que sejam insuficientes.

A Lei de Drogas tem uma ligação perversa com os problemas estruturais das polícias. Apenas 8% dos homicídios cometidos no Brasil são investigados, mas isso não significa que sejamos o país da impunidade. Temos a quarta maior população carcerária do planeta e a que cresceu mais rapidamente nos últimos vinte anos. O que existe é uma inversão de prioridade. Os presos provisórios são 40% desse total e dois terços estão na cadeira por crimes de roubo, furto e tráfico de drogas. Os autores de homicídios dolosos são em torno de 12%. Esses presos por tráfico são em sua maioria pretos, pobres e com baixa escolaridade, que não faziam uso de armas para cometer seus crimes, não tinham vínculo com organizações criminosas nem são acusados de práticas violentas. Essa escolha seletiva sobre quem prender é consequência do modelo de polícia. Como a PM é pressionada para aumentar a sua produtividade e não tem poder de investigação, ela vai atrás de apreender armas e drogas para produzir flagrantes. As armas muitas vezes são apreendidas por esse policiamento ostensivo e militarizado e revendidas para o mesmo grupo ou para uma facção rival.

Fórum – E por que essa estrutura policial não muda com uma unificação e desmilitarização?

Soares – Em 2003, chegamos muito perto de alterar o artigo 144 da Constituição Federal, que trata da estrutura da segurança pública. Esse ponto é o legado da ditadura mais presente na nossa vida. Seria uma mudança consistente, fruto de um debate com diversas audiências públicas. Conseguimos o apoio dos governadores e chegamos a pensar em um grande encontro com os presidentes das duas Casas Legislativas e do Judiciário para lançar o Pacto pela Paz. O presidente Lula gozava de grande prestígio naquele momento e, por isso, conseguimos construir um consenso que parecia inimaginável. A realização desse encontro acabou sendo adiada até que a proposta foi engavetada. Só depois soube que o núcleo duro do governo não queria que o presidente assumisse um compromisso direto com a questão da segurança, pois ele ficaria vulnerável a curto prazo. O temor é que ele passasse a ser criticado por causa até de um assalto a pedestre na Avenida Paulista, por exemplo. A gente acreditava que só o PT seria capaz de pagar o preço de uma política dessas por convicção. Mas Lula fez o mesmo cálculo de preservação do capital político que o FHC fez antes dele e a Dilma repetiria depois.

Fórum – Como você vê o momento do governo e da oposição, que vocês – da Rede – apoiaram no segundo turno?

Soares – Considero o governo desastroso, assim como a oposição. Os oposicionistas se renderam por oportunismo a alianças injustificáveis, com políticos segregacionistas. No aspecto econômico, a presidenta Dilma Rousseff está aplicando medidas que seriam defendidas pelo PSDB, como o ajuste fiscal, e agora criticadas pelos líderes tucanos. Os papéis se inverteram nesse aspecto. O momento político é reflexo de uma campanha do PT que ultrapassou os limites, ao reforçar a disputa entre o povo e a elite. Quando a Marina Silva entrou na disputa e ameaçou essa dualidade, eles desrespeitaram a imagem e a história dela para tentar igualá-la ao Aécio Neves e manter a disputa entre esses dois pólos.

Fórum – A situação estaria melhor em um governo Aécio?

Soares – A negociação entre a Marina e o Aécio se baseou em pontos comuns do programa de governo. Poderia ser um mal menor. A ida para a oposição talvez teria sido uma boa oportunidade para o PT retomar suas velhas bandeiras e entrar fortalecido na disputa em 2018. Seria muito bom ver os seus deputados contra os impactos desse modelo econômico e de grandes obras com impacto social e ambiental negativo, como a usina hidrelétrica de Belo Monte. O partido precisa se dissociar de sua elite, que se tornou uma aliada das práticas da velha política.

Fórum – Como você vê a situação atual do PT, do qual fez parte?

Soares – O PT terá muita dificuldade de se reconstruir, não só porque não soube agir de maneira adequada, mas também por não ter se renovado como era esperado. Mas não há núcleos humanos homogêneos. Não são todos que erraram e muitas pessoas dentro do partido mantiveram uma postura crítica e atuam com boas intenções. Não é justo atribuir as falhas do PT a todos eles.

Fórum – Essa crise pode afetar a esquerda como um todo. Como a Rede se coloca nessa situação?

Soares – Acho que a palavra esquerda foi desmoralizada por políticas que não têm a ver com a ideia de unidade das esquerdas. Existe uma postura insustentável do ponto de vista moral e político com essa imagem. Para unir as esquerdas é preciso resgatar a bandeira socialista que foi destruída. Isso exige mais substantivo e menos retórica. Políticos que se apresentam como “de esquerda” estiveram à frente de uma reforma do Código Florestal que defendeu o agronegócio e prejudicou comunidades tradicionais e a luta pela reforma agrária.

A necessidade é de se comprometer com uma utopia que está na origem das esquerdas, de igualdade, liberdade, sustentabilidade e justiça, capazes de aglutinar um grande número de cidadãos. Quando esse sonho é rotulado com a situação presente, fica esvaziado como caminho para o mundo. Precisamos fazer uma oposição a esse modelo de crescimento que destrói o planeta e serve à acumulação de riquezas.

Fórum – Por que o PT não conseguiu seguir esses princípios no poder?

Soares – Com exceções em áreas como a cultura, o PT não conseguiu desenvolver respostas para questões imediatas. Existia um horizonte distante e questões de disputa interna. Sem uma mediação prévia, sobraram os caminhos de uma revolução ou da adesão acrítica à realidade. Grandes programas desse governo não têm a marca do PT. Se você for pensar, o Bolsa-Família foi criado por técnicos. O FHC recusou o projeto e o Lula achou por bem colocá-lo em prática. Não o estou criticando por isso, nem o programa em si. Mas não é uma política do repertório petista. Tanto que muitos militantes históricos tratavam a ideia como uma proposta assistencialista.

A política econômica colocada em prática pelo ministro Antonio Palocci foi um prosseguimento do que havia, o PIB não foi contestado como medidor do centralismo e o carro manteve um protagonismo na política de consumo. No plano nacional, o PT não conseguiu ter uma contribuição inovadora como foi em muitas prefeituras. Acho, aliás, que está nesse ponto o grande equívoco do PSOL. O problema nas distorções após a chegada ao poder. A solução não está na ideia de que a pureza é o antídoto, mas na atenção às mediações.

Fórum – Como você consegue manter algum otimismo em meio a essa situação tão adversa?

Soares – Por princípio, não me entrego. Não acreditar na possibilidade de mudança seria equivalente a renunciar à vida. Sem me iludir e mantendo o mínimo de realismo, acho que existe uma possibilidade se conseguirmos aprofundar a democracia com mais participação, informação livre e educação. Tenho esperança nos jovens das favelas que chegaram às universidades. Minha experiência como professor mostra que eles estão mais interessados em saber do que a classe média. O Brasil ainda conhece pouco de sua expressão própria, estamos descobrindo o protagonismo depois de 400 anos de escravidão. Mas passaremos por momentos muito difíceis no curto prazo.

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