O aborto das escravas: um ato de resistência

“Enquanto o couro do chicote cortava a carne/ A dor metabolizada fortificava o caráter/ A colônia produziu muito mais que cativos/ Fez heroínas que pra não gerar escravos matavam os filhos/ Não fomos vencidas pela anulação social/ Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial/ O sistema pode até me transformar em empregada/ Mas não pode me fazer raciocinar como criada.”

(trecho da letra Mulheres Negras – Eduardo – Facção Central)

Por Jéssica Ipólito, do Blogueiras Negras

No início do Brasil colônia (século XVI) em diante, sequestraram a população negra oriunda de várias partes do continente africano para impulsionar a economia. O povo negro foi a opção “viável” escolhida pelos colonos para serem utilizados como mão-de-obra escravizada para não terem de arcar com trabalhadores assalariados. Além de que, os portugueses já haviam montado uma rede de comércio negreiro para serem usados nas plantações de cana-de-açucar lá nas ilhas da Madeira e Açores.

Executaram essa mesma estratégia no Brasil, usurpando vidas e estraçalhando corpos. “Estima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos” segundo Boris Fausto em “História do Brasil”. Outros historiadores falam em quantias variando em 8 a 13 milhões. Independente do número exato, a presença massiva do povo negro é inegável.

Dito isto, quero lembrar as mulheres negras escravizadas que aqui viveram. Estas, avaliadas desde seu sequestro em terras africanas, eram encarregadas dos mais diversos serviços. Eram o alvo principal de estupros e abusos sexuais constante. Sem terem chance de elevar sua voz contra essa violência, um ato de resistência brotava: o aborto.

O aborto das mulheres negras escravizadas não era somente para livrar seus filhos do cativeiro e violência. Era também uma renúncia em não repor a mão-de-obra escravizada: O jesuíta Antonil¹, alertava os senhores que era preciso tratá-las bem para que ficassem felizes e reproduzissem pequenas escravas e escravos, que seriam criados desde a tenra idade, nos moldes da servidão violenta.

As ações de recusa das escravizadas em parir filhos frutos de violência sexual; a percepção de que com a maternidade sua carga de trabalho aumentaria haja vista que eram encarregadas de muitas tarefas; a recusa em dar o seio para filho do senhor; a recusa em parir uma criança cuja vida seria relegada ao mesmo destino que elas, foram medidas de resistência ao sistema escravista, onde a mulher negra – embora cerceada – fazia das poucas brechas que lhe restavam um escudo de proteção a si mesma e aos demais.

O aborto de ontem é o mesmo de hoje

Sem mecanismos oficiais que façam um levantamento certeiro do número de abortos provocados anualmente, o Brasil segue com estatísticas levantadas por pesquisadores, médicas/os e demais especialistas no assunto. Estima-se que cerca de 1 milhão de abortos aconteçam todo ano no país. Uma pesquisa mais detalhada que pode dar características precisa da mulher que aborta, foi iniciada em 2010, pela antropóloga Débora Diniz, professora do Departamento de Serviço Social da UnB (Universidade de Brasília) e do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, e pelo sociólogo Marcelo Medeiros (UNB) e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

A mulher que aborta é casada, tem filhos, tem religião e carrega sozinha o fardo da culpada gerada pelo estigma que a criminalização do aborto proporcionou desde os primórdios da proibição.

As mulheres negras morrem 3-4 vezes mais que as brancas. “A diferença é basicamente por conta do racismo institucional, ou seja, a população negra não tem acesso aos serviços e quando tem são de má qualidade, lá onde vivem é que estão os piores serviços ou mesmo inexistem”, afirma Alaerte Leandro Martins, enfermeira obstétrica negra que se debruçou sobre o assunto diante da negação por parte dos setores públicos em reconhecer o racismo institucional agindo e se refletindo nas estatísticas.

As estimativas de que ano após ano o aborto clandestino e inseguro fará mais vítimas não precisam de números: as mulheres continuarão abortando. Assim como séculos atrás, as mulheres negras escravizadas o faziam como parte de sua sobrevivência e resistência, as mulheres negras e não-negras de hoje também. Um legado que deixa explícito que suas vidas vem em primeiro lugar. Seus corpos em primeiro lugar.

Mulheres diversas seguem escupindo sólidos caminhos com demarcações de que são sim sujeitas de direito e que sua resistência virá em todas as formas de manifestação. O aborto é uma delas: resistência ao controle dos corpos, da vida; resistência à maternidade obrigatória; resistência à obediência patriarcal e racista; resistência à ideia de subserviência à sociedade; resistência à tentativa de silenciar gritos de dor e violência. O perfil da mulher que aborta é o perfil da resistência, da resiliência -acima de tudo.

A criminalização do aborto não passa de uma medida pura e simplesmente moral: a religiosa, a mais cruel. É descabida tal qual fora a proibição do divórcio no passado. Essa criminalização atinge as mulheres negras com uma meticulosa crueldade que só o racismo proporciona, que podem ser vista a olho nu se formos acompanhar o atendimento de uma mulher negra no SUS. O racismo institucional a faz criminosa no momento em que ela pisa no pronto atendimento. Da entrada à saída, todos os procedimentos, a longa espera e o tratamento desumano escancaram os tentáculos racistas impregnados na sociedade brasileira, embora o Estado queira tapar o sol com a peneira.

Não raro penso no aborto como uma medida genocida contra todas as mulheres: o controle é ineficaz, as mulheres não deixam de fazer um aborto por ele ser proibido. O que elas fazem é adiar a busca por auxílio da saúde pública depois de abortar; significa que as mulheres procuram assistência médica quando estão com hemorragia grave ou infecções alastradas. Manter essa medida criminalizadora só atesta o fato de que o Estado quer as mulheres (todas, sem exceção) pagando com sangue seus atos. Até a última gota.

Em memória de todas as mulheres negras brutalmente escravizadas e mortas desde que aqui foram obrigadas a viver, dedico esta poesia de Castro Alves, que fala justamente do aborto praticado pelas escravas como um ato de amor:

Mater Dolorosa

Meu Filho, dorme, dorme o sono eterno
No berço imenso, que se chama – o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.
Ai! borboleta, na gentil crisálida,
As asas de ouro vais além abrir.
Ai! rosa branca no matiz tão pálida,
Longe, tão longe vais de mim florir.
Meu filho, dorme Como ruge o norte
Nas folhas secas do sombrio chão!
Folha dest’alma como dar-te à sorte?
É tredo, horrível o feral tufão!
Não me maldigas… Num amor sem termo
Bebi a força de matar-te a mim
Viva eu cativa a soluçar num ermo
Filho, sê livre… Sou feliz assim…
– Ave – te espera da lufada o açoite,
– Estrela – guia-te uma luz falaz.
– Aurora minha – só te aguarda a noite,
– Pobre inocente – já maldito estás.
Perdão, meu filho… se matar-te é crime
Deus me perdoa… me perdoa já.
A fera enchente quebraria o vime…
Velem-te os anjos e te cuidem lá.
Meu filho dorme… dorme o sono eterno
No berço imenso, que se chama o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.

Referências:

MULHERES NEGRAS: SUA PARTICIPAÇÃO HISTÓRICA NA SOCIEDADE ESCRAVISTA de Maria da Penha Silva

Mortalidade materna de mulheres negras no Brasil de Alaerte Leandro Martins

A MULHER ESCRAVA NO MARANHÃO OITOCENTISTA: cotidiano e resistência de Elizabeth Sousa Abrantes e Francinete Poncadilha Pereira

Os quilombolas de Ronaldo de Souza Castro

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Crianças escravas no Brasil Colonial de Silvani dos Santos Valentim

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