A forma que assumiu a independência política no Brasil constituiu o primeiro grande pacto de elite, que se reproduziu, sob distintas formas, ao longo de toda a nossa história. Enquanto a Espanha resistia à invasão napoleônica e, derrotada, favoreceu a cadeia de revoluções de independência de suas colônias na América Latina, a coroa portuguesa veio para o Brasil sem resistência, estreitando a dominação colonial, ao contrário da ruptura nos países de colonização espanhola. (Cuba e Porto Rico foram os únicos que não conseguiram obter a independência naquele momento e, ao não fazê-lo, terminaram tendo os destinos mais radicais e contrapostos no continente. Cuba se tornou socialista, enquanto Porto Rico é um “estado livre associado” aos EUA.)
O Brasil tornou-se independente, mas a vinda da família real deu uma forma particular a essa transição: não passamos de colônia a república, mas de colônia a monarquia. E, pior ainda: não se extinguiu a escravidão, ao contrário do que ocorreu nos países que, sob a liderança de Bolivar, de San Martin, de O’Higins, de Sucre, de Artigas, entre outros, realizaram verdadeiras revoluções de independência. Sepultaram a colônia mediante a derrota final dos exércitos espanhóis na Batalha de Ayacucho, expulsando os colonizadores e fundando os Estados nacionais distintos, sob sistema republicano. E acabaram com a escravidão.
Enquanto isso, no Brasil, como sempre acontece com os pactos de elite, são os mais pobres os que pagam o preço da conciliação, do jeitinho, dos acordos. O Brasil tornou-se o país que mais tardou a abolir a escravidão, inclusive depois de Cuba. Nesse entretempo, promulgou-se a Lei de Terras, pela qual os velhos proprietários, mediante os mecanismos da grilagem – o cocô do grilo faz que um documento recém-escrito apareça como se fosse velho, legitimando áreas recém-apropriadas como se tivessem sido herdadas tempos atrás -, legalizaram e se apropriaram das terras no Brasil. Quando os escravos finalmente se tornaram “livres”, o eram no sentido que Marx também atribui aos servos da gleba: eram “livres” e “nus”, desprovidos de terras às quais acoplar sua força de trabalho.
Os negros, primeira geração do proletariado brasileiro, que criou durante séculos as riquezas apropriadas pela nobreza européia e as elites brancas brasileiras, eram reciclados automaticamente para serem pobres e miseráveis, despossuídos das riquezas que tinham criado. Nesse momento, o liberalismo já revelava todos os seus limites, quando conviveu com a escravidão sem protagonizar a luta pelo seu fim.
Esse primeiro pacto permitiu que as elites dominantes dificultassem o surgimento de uma revolução de independência que terminasse, ao mesmo tempo, com a colônia e a escravidão. Quando o monarca português colocou a coroa na cabeça do filho e disse “meu filho, ponha a coroa na tua cabeça antes que algum aventureiro o faça”, referia-se aos brasileiros que poderiam liderar essa revolução, como Tiradentes, e para que não surgisse aqui algum Bolivar, Sucre, Artigas, San Martin.
O capitalismo, que tinha chegado às Américas jorrando sangue, com os dois maiores massacres da história da humanidade – a destruição dos povos indígenas e a escravidão -, fazia, no Brasil, pela modalidade de saída do colonialismo, que a questão colonial e a questão negra se desdobrassem na questão da terra, do latifúndio, condicionando fortemente o Brasil a ser o país de pior distribuição de renda do continente e de maior desigualdade no mundo.
Quando se discutem políticas de reparação histórica, de discriminação positiva, de cotas, é preciso remontar a todo esse cenário histórico para saber que os negros, em sua grande maioria, foram explorados, discriminados, excluídos, humilhados. É indispensável fazer toda essa trajetória para nos darmos conta plenamente da razão por que os negros se tornaram automaticamente pobres, relegados, marginalizados na sociedade brasileira – situação que a política de cotas pretende minimizar.
Matéria orginal: 1808, 1822 e os negros