40 anos com Leci Brandão

Numa manhã gripada de julho, caminho pela primeira vez nos corredores internos da Assembleia Legislativa do estado de São Paulo. Estou em busca de música, será que existe música na casa dos deputados? Num dos gabinetes, encontro três colegas de Jornalistas Livres, o Rafael Vilela, a Ísis Vergílio, o Christian Braga, que já chegaram para acompanhar e gravar a entrevista com a deputada estadual pelo Partido Comunista do Brasil Leci Brandão, carioca de 12 de setembro de 1944 que por estes dias comemora, na São Paulo adotiva, 40 anos de presença gloriosa (e quase sempre invisível para a minoria branca) na cultura brasileira. Procuro por uma mulher, será que existem deputadas na casa dos deputados?

Por Pedro Alexandre Sanches Do Farofafa

É fácil reconhecer o gabinete dela, em meio a um sem-fim de gabinetes sisudos: as janelas de vidro estão repletas de cartazes de eventos e lutas diversas, invariavelmente ligados aos direitos humanos. Um dos cartazes é d@s Jornalistas Livres. Leci chegou à Assembleia bem cedo, e nos faz esperar alguns poucos minutos enquanto zanza pelos gabinetes de outros deputados ou sabemos lá por onde. Quando chega, chega cheia de amor para dar, já interessadíssima em mais um cartaz d@s Jornalistas Livres que está em poder da Ísis.

 

Leci Brandão: Vem cá, isso aí é um cartaz? Eu não tenho esse cartaz. Eu nunca vi esse cartaz. Eu gostaria de ter uns dois ou três aqui pra botar aqui, na boa, num lugar bem destacado, porque eu adoro vocês. Amor, foi você que fez uma matéria minha uma vez? Você sabe que o dia que eu li eu me emocionei, eu me emocionei, porque “lave a boca com sabão”, não sei o quê, eu falei: Meu Deus do céu, apareceu alguém pra me defender! Foi muito legal aquilo.

 

Sim, querida Leci, fui eu que falei de você em “Lave a boca com sabão para falar de Leci Brandão“, de 2012, num falecido blog no Yahoo! BraZil, e também em outros textos como “O silêncio de Leci Brandão“, numa Caros Amigos de 2011, e “A madrinha do rap“, numa CartaCapital de 2007. Madrinha do rap, do samba e da cidadania, Leci tem muito o que dizer, tanto que nem dá fôlego para que eu faça uma primeira pergunta e já sai elogiando @s Jornalistas Livres, empolgada pela festa a que compareceu na Praça das Artes, no mês de maio que se foi.

 

LB: Deixa eu falar pra vocês, cês sabem que ainda estou sob impacto emocional daquele evento? Foi muito bonito, muito significativo, muito legítimo. É sério. Eu consigo lembrar os rostos das pessoas, uma coisa que me comoveu muito, porque era um outro tipo de público, um público jovem, com a marca da diversidade, e as pessoas estavam felizes. Mas o que mais me tocou foi que várias meninas negras chegaram pra mim, naquela confusão, “ô, Leci, você me representa mesmo!, vou votar em você!, joguei o meu voto no lixo!”. Eu subi no palco e disseram “já fala”, eu não sabia o que eu ia falar, então fui falando do coração. Vocês gravaram aquilo tudo, né? Depois eu queria, quero guardar pra mim, foi muito legal, foi um momento muito legal na minha vida.

Pedro Alexandre Sanches: Fiquei reparando que você desceu do palco e se formou uma roda de tietes ao seu redor.

LB: Foi muito legal, né? Os depoimentos das pessoas foram maravilhosos, eu lavei a alma naquele dia.

PAS: O que você falou das meninas negras ao seu redor deve ser algo habitual pra você.

LB: É, mas é que ali era um público específico, que acompanha a comunicação alternativa. Tinha muito estudante, menina, trançadeira, rapper, tudo.

PAS: Sem-teto…

LB: E quando você escuta, principalmente de jovem, um depoimento desse, é comovente. Porque é assim, nunca sei se a gente tá na sintonia. O palavreado é outro, o comportamento é outro, eles frequentam outros lugares. A minha vida hoje é o quê? É esta Assembleia e show nos finais de semana, quando posso fazer. Então estou muito fechada nesse negócio, não saio mais, nem me divirto, porque não dá tempo. Mas foi muito bom, muito bom mesmo. Mas vamos lá, sou toda de vocês.

PAS: Eu queria começar agradecendo você receber a gente aqui, ficamos muito felizes. A primeira pergunta era justamente nessa linha: o que um mandato público faz com a sua carreira musical? Como ela se modificou em função de você, ou a senhora, ter virado deputada?

LB: Pode me chamar de você, cara, eu não tenho essa coisa, não, pelo amor de Deus. Com vocês é você mesmo. Veja bem, o que muda é que o meu tempo agora, pra arte, ficou bastante reduzido. Eu quase não tenho feito shows, até porque tem um detalhe: qualquer show que tenha dinheiro público eu não posso participar, pelo fato de estar deputada. Não posso participar de um monte de coisa, morro de tristeza, porque o palco é a minha vida há 40 anos. Mas, por outro lado, o que eu percebo é que tá tendo uma identificação infinitamente significativa neste momento, pelo fato de eu estar atuando na política de acordo com tudo aquilo que eu compus e interpretei e defendi. A minha vida artística sempre foi usada de forma instrumental pra ajudar as pessoas.

 

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