Dilma Vana Rousseff II

Dia 29 de agosto, da tribuna do Senado, ao defender o seu mandato conquistado nas urnas, a presidenta Dilma Rousseff – “Guerrilheira”, como é chamada pelos seus algozes -, foi de uma dignidade ímpar, como raramente os homens conseguem ser. Dilma, por 14 horas seguidas, enfrentou um debate em que procurava se defender do indefensável, pois o veredicto já estava posto. Todas as tentativas da presidenta em corrigir os problemas fiscais que afetavam a economia do país, algumas delas contrariando suas próprias convicções, foram rechaçadas uma a uma. Pelo contrário, o tempo todo a claque de Eduardo Cunha armava-lhe como resposta pautas-bombas, que explodiriam as finanças desastradamente. Irresponsabilidade parlamentar em estado puro. Os senadores e senadoras, transformados em juízes, cometeram o crime perfeito. Toda vez que uma vítima é transformada em ré, tem-se o crime perfeito.

Por Helio Santos Do Brasil de carnee osso

Em março do ano passado escrevi, aqui nessas páginas, nosso primeiro texto sobre a saga da presidenta. Naquela ocasião, afirmei que a sua característica mais rica não era de cunho partidário. Disse: “sua biografia é quem diz de seu caráter e sobretudo de seu compromisso com a mais legítima causa nacional”. Acrescento: trata-se de um compromisso que a fauna política nacional raramente apresenta; em sua maioria formada por homens.

A maioria dos analistas não lograram, ou não quiseram, perceber o componente misógino neste longo processo. Todavia, todos aqueles que lutam contra as discriminações sabem decifrar os sinais de irracionalidade próprios de quem hierarquiza as diferenças. Dilma, além da birra ideológica do mundo empresarial, sofreu uma sofisticada rebelião misógina, energia que alimenta o patriarcalismo que é o cerne da política brasileira. Rebelião sofisticada porque sugere uma aparente neutralidade. De fato, para um misógino-esgotador, figura que decifro em meu romance O homem lésbico (Editora Global), as mulheres que detêm um brilho especial – e Dilma é uma persona esfuziante -, são as vítimas preferenciais desse macho, que é um espécime de vampiro que se alimenta, não de sangue, mas da luz que emana daquelas mulheres. O efeito da ação desse tipo de misógino costuma ser devastador, pois ele busca eclipsar a energia que alimenta a força dessa mulher especial.

Dilma enfrentou doença grave e a venceu. Ao vê-la no Senado, por 14 horas seguidas, responder às intermináveis e repetidas acusações num país em que políticos-prefeitos roubam o dinheiro da merenda das crianças pobres, me fez sentir, além de vergonha como brasileiro, uma revolta doída.

Sobre o seu desempenho altivo na trincheira que se tornou o Senado, no dia seguinte, a mídia em uníssono repetiu: “Dilma não disse nada de novo”. Absurda e cretina essa observação! Ora, se as acusações continuaram sendo as mesmas, porque se deveria mudar as respostas….

Na ausência da tipificação de crime de responsabilidade – única forma de afastar quem ocupa a presidência da república -, alega-se por último que o impeachment é “pelo conjunto da obra”. O que essa ideia enseja é que se pode afastar alguém do poder executivo devido ao seu desempenho. No presidencialismo não deve ser assim: governantes que desagradam saem mediante eleições. Não há outra forma de afastar governantes que não cometeram crimes a não ser mediante golpes. Todos os golpistas em todas as partes do mundo não se vêm como tais. Por que aqui deveria ser diferente? Mil-bocas repetem: houve um processo transparente com pleno direito de defesa etc. Alegar o cumprimento da ritualística processual para negar o golpe parlamentar não convence; em especial à mídia e aos governos do mundo. Nosso país se rebaixou – como uma república bananeira do século 21. Somos o país da mentira crônica: tudo o que somos; negamos – de bom e de mau. Não se reconhece o valor da diversidade brasileira, por outro lado não assumimos o machismo, a homofobia, o racismo e o absoluto desdém das elites ao baixo padrão de civilidade que ostentamos secularmente.

A verdade é que tudo foi muito bem urdido por forças diferentes: políticos derrotados, a parte nefasta do mundo corporativo, como a FIESP, o TCU, setores do judiciário, a Mídia e também, é claro, parte importante da população mais abastada que não gosta do PT, que não deve ser eximido aqui dos erros cometidos. Em alguns momentos, Dilma não se viu apoiada integralmente nem pelos de seu partido; o PT. Houve, sobretudo, a sabotagem do PMDB a quem estava entregue a vice-presidência da república e inúmeros ministérios.

O governo Dilma sofreu uma queda semelhante à de um Boeing; em que diversos e reiterados erros tiveram de ser cometidos. Exibir fraqueza num jogo político selvagem como foi o do impeachment não me pareceu positivo. Por exemplo: ter rebaixado ministérios como o da mulher, o da Igualdade Racial e o dos Direitos Humanos. Cortar na própria carne não arrefeceu as bancadas que no congresso não se organizam a partir das siglas partidárias, mas sim da conjunção de interesses: a dos evangélicos, dos ruralistas, a da bala etc. Pelo contrário: tais segmentos se animaram e ficaram mais sectarizados.

O que pude observar é que Dilma, e de certa forma também Lula, tiveram e estão tendo os seus dias de “negro”. Explico-me: o tratamento midiático dado a ambos tem sido muito semelhante à epopeia das cotas raciais, na qual os editoriais truncados desinformavam, deturpando a essência do que se tratava. Tudo de forma sincronizada e sem dar chance à resposta no mesmo tamanho e a tempo. No caso das cotas raciais os algozes das ações afirmativas perderam de 11 a zero no STF – desfecho bem diferente do que se observa agora.

A essência do problema que a sociedade brasileira vai ter de enfrentar não está apenas no afastamento de Dilma Vana Rousseff, mas sobretudo nas ações políticas já em curso. Em nenhum momento do debate político-eleitoral travado nas eleições de 2014 cogitou-se congelar por 20 anos os gastos com saúde e educação. Tais iniciativas têm as impressões digitais dos que urdiram essa trama. Trata-se, pois, de um golpe profundo na cidadania tão fustigada dos brasileiros e brasileiras.

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