Contra onda conservadora, Erica Maluguinho leva Aparelha Luzia a festival de Artes Queer na Irlanda do Norte

Convidada especial de uma das atividades principais do Festival, o Simpósio de Artes Queer, cujo objetivo declarado é desenvolver projetos e redes internacionais de arte queer, a Malunguinho, claro, vai falar de luta.

 

Por Sandra Silva, do NegroBelchior 

Pedro Borges/Alma Preta

De 9 a 18 de novembro de 2017, ocorre em Belfast, capital da Irlanda do Norte, o Outburst – Festival de Artes Queer – como o nome sugere, uma explosão internacional de trabalhos artísticos pensados por pessoas que desafiam os binarismos de gênero. Este ano, o festival contará com uma convidada preta, trans e nordestina: Erica Malunguinho, a parideira da Aparelha Luzia, quilombo que se ergue na região central da selva paulistana. Convidada especial de uma das atividades principais do Festival, o Simpósio de Artes Queer, cujo objetivo declarado é desenvolver projetos e redes internacionais de arte queer, a Malunguinho, claro, vai falar de luta.

No Brasil em que museus são apedrejados e artes queer são combatidas por forças conservadoras organizadas, mais e mais pessoas vivenciam experiências de ódio e de negação às quais o povo preto e periférico vem resistindo há mais de 500 anos

 

Desde o século XVI, a Ilha da Irlanda tem sido lugar de uma disputa entre católicos e protestantes que forçou à independência do Reino Unido, nos anos 1920, do que hoje se conhece como a República da Irlanda, cuja capital é Dublin. Junto com Inglaterra, Escócia e País de Gales, o norte da ilha segue como parte do império britânico na forma de Irlanda do Norte, a menor das quatro nações que o conformam e um dos países mais pobres da Europa. Até hoje, Belfast, com seus muros separando zonas católicas e protestantes, é retrato vivo de uma história global de conflitos religiosos, desde que as cruzadas deram o pontapé para a difusão de fundamentalismos mundo afora. Esse mesmo fundamentalismo que justifica “guerras ao terror”,  destrói e demoniza tudo o que está fora do establishment cristão, dentro de uma ideologia racista que permite que hoje, terreiros de matriz africana sejam queimados Brasil adentro.

 

Há onze anos o Outburst desafia valores estruturados em séculos de conflitos e segregações. Na batalha das ideias, mentes e corações, a explosão da arte queer se esboça não somente como movimento artístico, mas também político, emancipatório de pessoas e de corpos que potencializam exatamente o que os tornam abjeto. No debate corpo-político vivido na Aparelha Luzia, a pretitude não é um recorte de análise, e sim o fundamento de onde emergem as movimentações da experiência humana no decorrer das diásporas. Neste território quilombola, as múltiplas maneiras de construção, autoconhecimento e reconhecimento de identidades e sexualidades são indissociáveis e inerentes a toda e qualquer atividade. Esses temas são vividos tanto no campo objetivo das muitas interações e eventos que se realizam na Aparelha, quanto no campo das subjetividades próprias dos processos de sociabilidade em que os afetos, a espontaneidade e o cotidiano são rios navegáveis de águas profundas e de densidades diversas. Os passos da Aparelha vêm de longe, resultado de lutas contra o colonialismo que ainda nos assombra, a despeito do esforço descolonizador que vem sendo levado a cabo desde o primeiro quilombo, do primeiro terreiro de candomblé e de tantas outras iniciativas de auto organização e resistência que dizem muito sobre a presença dos povos originários sequestrados da África e das Américas.

 

O “empoderamento” preto de que tanto se fala não se resume a uma afirmação estética, mas à disputa por poder político, econômico e social – em particular, em um país como o Brasil, cuja população é 54% negra: o maior povo preto fora da África, e o mundo nem sabe. Não raro, os movimentos de resistência e existência preta são relegados a um balaio “pós-moderno” pra onde vai tudo o que desafia centenas de anos de binarismos políticos, econômicos e sociais. Vozes e potências resistindo à uma cultura política racista, machista e doutrinária.

 

O elemento chave desta conjuntura de disputas e lutas são as mulheres –  pretas, cis, pobres, trans e travestis que teceram e tecem caminhos para o desmonte do patriarcado, impondo margens aos maiores ataques de abjeção existencial. No Brasil em que museus são apedrejados e artes queer são combatidas por forças conservadoras organizadas, mais e mais pessoas vivenciam experiências de ódio e de negação às quais o povo preto e periférico vem resistindo há mais de 500 anos. Neste Brasil, é urgente discutir projeto de futuro e de poder. O “empoderamento” preto de que tanto se fala não se resume a uma afirmação estética, mas à disputa por poder político, econômico e social – em particular, em um país como o Brasil, cuja população é 54% negra: o maior povo preto fora da África, e o mundo nem sabe. Não raro, os movimentos de resistência e existência preta são relegados a um balaio “pós-moderno” pra onde vai tudo o que desafia centenas de anos de binarismos políticos, econômicos e sociais. Vozes e potências resistindo à uma cultura política racista, machista e doutrinária.

 

A Aparelha Luzia, idealizada pela Érica, é um espaço de encontro político, artístico, cultural, pedagógico, econômico, social e afetivo para toda existência, inteligência e potência preta, viva e em movimento. A Aparelha permite a realização de histórias e existências entre irmãos – sobretudo, entre irmãs: as gays, as trans, as travestis, as drags, as queer tudo. Esse convite para participar no Outburst certamente reconhece que a sensibilidade da mulher que pariu esse quilombo sabe de onde vem o marco civilizatório que alterou o nosso conhecimento sensível. A exposição internacional também é refletir sobre as dores coletivas, abrindo a possibilidade de projetar futuro. Qualquer ideia de paz não será o remendo de uma história de exploração e de racismo da qual o continente africano é principal alvo, resultando em infindáveis disputas e guerras entre irmãos, muitos dos quais forçados a solicitar refúgio em sociedades que os odeiam. Malunguinho vai à Irlanda fazer o que os movimentos emancipatórios fazem desde longe, de onde vêm os nossos passos: ampliar perspectivas de mundo e horizontes de luta.

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