Ameaçado por cortes na cultura, cinema negro brasileiro é reconhecido fora do país

Invisibilizado e muitas vezes ignorado pelos festivais brasileiros, o cinema negro desempenha uma função de reivindicação da cultura afro-brasileira e resiste em meio à falta de incentivos, algo que pode se intensificar com o governo de Jair Bolsonaro. Na contramão dos cortes, filmes protagonizados e dirigidos por negros ganham reconhecimento em mostras e festivais como o de Roterdã.

Ainda durante a campanha, Jair Bolsonaro havia prometido a transformação do Ministério da Cultura em uma pasta do Ministério da Cidadania, o que se concretizou após sua eleição. Com a extinção do ministério, a Ancine ficou sob o comando de Osmar Terra (MDB), deixando a classe artística desamparada e sem perspectiva de novas políticas afirmativas, o que se soma a outras decisões anticultura do governo como a reavaliação dos patrocínios de incentivo à produção cultural da Petrobras.

“Reconheço o valor da cultura e a necessidade de incentivá-la, mas isso não deve estar a cargo de uma petrolífera estatal”, afirmou Bolsonaro em seu Twitter. De acordo com ele, o Estado tem maiores prioridades.

Em 2016, ano em que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) começou a registrar dados sobre raça no audiovisual, nenhuma mulher negra dirigiu ou escreveu nenhum dos 142 longas-metragens brasileiros lançados, e apenas 2,1% dos longas foram comandados por homens negros. Já em 2017, somente 16% dos 160 filmes lançados foram dirigidos exclusivamente por mulheres, e nenhum por uma mulher negra. No Brasil, onde 54% da população é negra, dos filmes lançados em 2016, apenas 13,3% do elenco era negro.

São exceções os longas e curta-metragens dirigidos e protagonizados por pessoas negras que ganham maior destaque em mostras nacionais. Um exemplo é o filme baiano Café com Canela (2017), de Glenda Nicácio e Ary Rosa, que participou do Festival de Roterdã em 2018. O longa ainda venceu através do juri popular a categoria de Melhor Filme, do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o que rendeu o Prêmio Petrobras de Cinema e sua distribuição em circuito nacional.

No festival, o cinema negro foi contemplado por um número maior de inscrições em 2018 e de uma premiação destinada à temática negra: o Prêmio Zózimo Bulbul. Ainda assim, apenas 11% dos filmes da edição foram dirigidos por negros.

A mostra Soul in the eye — Zózimo Bulbul’s legacy and the contemporary black Brazilian cinema [Alma no Olho – O legado de Zózimo Bulbul e o cinema brasileiro negro contemporâneo, em tradução livre] teve destaque no 48º Festival de Roterdã, que aconteceu, entre 23 de janeiro e 3 de fevereiro, e levou ao público holandês o cinema negro brasileiro.

Partindo do legado de Zózimo Bulbul — ator, cineasta, produtor, roteirista e um dos maiores nomes do cinema negro — o Festival exibiu filmes como Abolição (1988), de Bulbul, Ilha (2018), de Ary Rosa e Glenda Nicácio, Meu amigo Fela (2019) de Joel Zito Araújo e Temporada (2018), de André Novais, vencedor do Festival de Brasília de 2018. A mostra, misturando clássicos com produções atuais, também contou com 22 curtas, como Alma no Olho (1973), produção pioneira de Bulbul, e Kbela (2015), de Yasmin Thayná.

O Festival de Roterdã, um dos maiores da Europa, procurou nesta edição ampliar a divulgação de produções invisibilizadas, segundo Janaína Oliveira, curadora da mostra. Ela explica que o evento buscou apoiar as produções do cinema contemporâneo negro brasileiro através das projeções nas salas de cinema holandesas, lotadas, colocando sob o holofote o trabalho de negras e negros que atuam na frente e atrás das câmeras, e, consequentemente, trazem a discussão das pautas raciais abordadas em suas obras. Mas ela ressalta que a produção contemporânea vai além do retrato dos problemas socioeconômicos, atentando às possíveis soluções.

“Festivais como Roterdã são importantes porque criam possibilidades de novos circuitos de exibição e circulação dos filmes. Os longas acabam entrando na indústria, e os curtas, em uma escala menor, também têm essa possibilidade de projeção, circulando em outros espaços e sendo vistos por outras pessoas”, afirmou.

Além de colocar os filmes em evidência, a mostra foi uma oportunidade também para que os criadores tivessem contato com a indústria cinematográfica internacional.

A ideia da mostra surgiu dos programadores Tessa Boerman e Peter Van Hoof após conhecerem a obra de Bulbul e entrarem em contato com Yasmin Thayná, diretora do curta-metragem Kbela, e Bruno F. Duarte, diretor de comunicação do filme. O curta traz um olhar sensível sobre o racismo cotidiano sofrido por mulheres negras e retrata a força ancestral dos cabelos crespos, mas foi ignorado e recusado pelos festivais nacionais. Posteriormente, foi descoberto na internet pela programadora do Festival de Roterdã, Tessa Boerman que, impactada, convidou Yasmin para o programa Black Rebels, em 2017, e foi surpreendida pelo filme levado pela diretora: Alma no Olho, de Zózimo Bulbul.

Cenário

A realidade da produção audiovisual brasileira é carregada de dificuldades, principalmente quando se trata de negritude. De acordo com dados da Ancine, o público dos filmes nacionais foi quase dez vezes menor que o de filmes estrangeiros em 2017 – 17.358.513 contra 163.867.894 pessoas. No ano, apenas 34,56% dos filmes que estrearam eram nacionais.

O racismo no cinema reverbera também na produção internacional, como mostra a pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (GEMAA), que mostrou que dos 218 filmes de maior bilheteria entre 2002 e 2014, 45% dos protagonistas eram homens brancos, seguido por 35% mulheres brancas, 15% homens negros e apenas 5% mulheres negras.

Poucos são os filmes comerciais que conseguem transpassar essa barreira e levar a causa racial para as telas de cinema. Pantera Negra (2018) é um exemplo disso, e arrecadou U$ 1,3 bilhão com um elenco predominante negro e um enredo antirracista. Moonlight (2017) também ultrapassou essa linha e, também com elenco e diretor negro, alcançou U$ 65,3 milhões de faturamento com um enredo sobre a vida de um homem negro gay.

Para a curadora, o cenário atual é de apreensão. “O cinema brasileiro é feito majoritariamente a partir de recursos públicos como os incentivos fiscais. O que tornou possível, em parte, essa geração de realizadores e realizadoras negras que estão ganhando destaque no cenário nacional, foram as políticas globais de educação”.

Ela enfatiza que grande parte das realizadoras e realizadores são oriundos de regiões periféricas, e tiveram acesso às universidades e cultura através das políticas de acesso e permanência, além dos editais de incentivo e financiamento ao audiovisual brasileiro.

+ sobre o tema

TERREMOTO HAITI:Hollywood se mobiliza para ajudar Haiti

O cantor americano Wyclef Jean, de origem haitiana,...

Lugar de fala: o medo branco

ESTABELECER QUE MINORIAS SÓ PODEM FALAR DOS PROBLEMAS DO...

Marco Romão chega ao Orun

Com pesar Geledés comunica que Marco Romão, companheiro, militante,...

Os negros como protagonistas na literatura num país de maioria negra

Editora Malê reúne autores negros para mudar a realidade...

para lembrar

Norte-americano Jay-Z chega ao topo da parada britânica pela primeira vez

  Segundo lugar no ranking fica com o veterano...

Saberes africanos

  El paisaje se repite en las matas...

Hoje na História, 1912, Dia do Forró nascia Luiz Gonzaga

O Dia do Nascimento de Luiz Gonzaga passou a...

Após 4 anos, série ‘Atlanta’ volta em sua melhor forma e longe de Atlanta

Quando vimos "Atlanta" pela última vez foi há quase...
spot_imgspot_img

50 anos de Sabotage: Projeto celebra rapper ‘a frente do tempo e fora da curva’

Um dos maiores nomes no hip hop nacional, Sabotage — como era conhecido Mauro Mateus dos Santos — completaria 50 anos no ano passado. Coincidentemente no mesmo ano...

Iza faz primeiro show grávida e se emociona: “Eu estou muito feliz”

Iza se apresentou pela primeira vez grávida na noite do sábado (27), em um show realizado no Sesc + Pop, em Brasília, no Distrito Federal. Destacando...

Festival Feira Preta tem shows de Luedji Luna, Tasha & Tracie e Marcelo D2 a partir de sexta no Parque Ibirapuera, em SP

Mais uma edição do Festival Feira Preta, um dos maiores eventos de cultura negra da América Latina, vai ser realizado a partir desta sexta-feira...
-+=