Bolsonaro acelera extremismo e passa à fase de consolidação de sua política

Bolsonaro faz uma aposta na nova distribuição de poderes no Congresso, que agora é presidido por aliados do governo. Quer implementar políticas extremistas no que chamou de “pautas de costumes”, mas cujo nome mais adequado seria “pautas do radicalismo”. Entre as 35 prioridades entregues à Câmara e ao Senado, há propostas de expandir posse de armas, permitir excludente de ilicitude, tornar “pedofilia” crime hediondo e aprovar o homeschooling.

Com a indicação da deputada ultra bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) para presidir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante da Câmara dos Deputados, o projeto do governo pode ficar mais plausível. Seria mais uma guinada extremista rumo à fase de consolidação da política bolsonarista.

As propostas do governo Bolsonaro sobre essas pautas têm duas características: algumas contemplam seu eleitorado mais radical, solidificando seu discurso e suas promessas que podem violar direitos humanos; as outras são medidas meramente populistas, que agradam o pensamento ultraconservador mas nada têm de efeito importante ou mudança estrutural. Câmara e Senado serão em breve testados em termos de fidelidade a Bolsonaro e de atenção às demandas mais urgentes da população. O auxílio emergencial não está entre as prioridades apresentadas.

A oposição terá de se reestruturar para barrar medidas perigosas. Isso colocará os partidos sob uma lupa, em que se cobrarão posicionamentos nas próximas eleições. O titubeio do DEM, por exemplo, que fez o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) deixar a presidência da Câmara ressentido, fez transparecer o verdadeiro lugar do partido: mais próximo à extrema direita do que ao centro moderado. O presidente nacional do DEM, ACM Neto, ex-prefeito de Salvador, assumiu que não descarta se aliar a Bolsonaro em 2022.

As escolhas do PT, ampla bancada com 53 deputados, também estão sendo percebidas com lente de aumento. Como, com quem e a que preço o partido irá se articular em nome de frear projetos de lei contrários às suas principais pautas e de se posicionar para 2022? Em entrevista ao Baixo Clero, podcast de política do UOL, a presidente nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR), defendeu alianças e disse não se arrepender por ter integrado o bloco formado por Maia para apoiar Baleia Rossi (MDB-SP), que perdeu a disputa pela Presidência da Câmara para Arthur Lira (PP-AL), aliado de Bolsonaro.

Com o Centrão poderoso e o governo Bolsonaro vitorioso no Congresso,

Prioridades do governo Bolsonaro

As medidas adotadas em 2020 de flexibilização na compras de armas representam um aumento de 94% na importação brasileira de revólveres e pistolas, um recorde. Nesse sentido, duas prioridades citadas pelo governo podem aumentar a violência no país: os PLs 6438/2019 e 6125/2019.

O primeiro autoriza o porte de armas para diversas categorias: guardas municipais; agentes socioeducativos; polícia penal; auditores agropecuários; peritos criminais; agentes de trânsito; oficiais de justiça; agentes de fiscalização ambiental; defensores e advogados públicos. Permite ainda que andem armados durante o exercício profissional e, em alguns casos, também o porte individual em todo o território nacional. Define que integrantes das Forças Armadas, policiais e bombeiros poderão comprar até dez armas de fogo de uso restrito ou permitido, munições e acessórios. O texto estabelece autorização do porte de armas individuais ou profissionais, mesmo fora do exercício das funções, para profissionais de segurança. A regra vale para militares, policiais, bombeiros, guardas municipais, agentes socioeducativos, auditores da Receita e agentes da Abin.

O segundo projeto de lei trata de uma “excludente de ilicitude revisitada”. Considera como legítima defesa a ação violenta de policial em reação ao que considera “injusta agressão”. Refere-se a confrontos com militares das Forças Armadas, a Força Nacional em operações de Garantia da Lei e da Ordem e demais agentes de segurança pública: policiais e bombeiros militares; policiais civis, federais e rodoviários federais. No texto, a injusta agressão é definida como:

– prática ou iminência de prática de terrorismo ou de conduta capaz de gerar morte ou lesão corporal;

– restrição à liberdade de vítima com violência ou grave ameaça;

– porte ou utilização ostensiva de arma de fogo.

Nesses casos, a reação policial será considerada legítima defesa e não haverá crime. O policial ou militar poderá ser responsabilizado apenas se houver excesso de força intencional e, mesmo nesses casos, o juiz poderá atenuar a pena. Na prática, o projeto de lei legitima ações violentas em operações policiais que têm ceifado a vida de crianças e jovens durante ações em comunidades e favelas.

Há também o PL 1176/2015, que qualifica como crime hediondo a pedofilia. Acontece que pedofilia é doença. O crime é a agressão sexual, se houver. Em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes – o estupro de vulnerável -, o crime já é considerado hediondo. Portanto, a medida é meramente populista.

Por fim, o PL 2401/2019 regulamenta o ensino domiciliar, conhecido como “homeschooling”. Um dos grandes entusiastas da prática é o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Lobby de entidades cristãs dos Estados Unidos ligadas a Donald Trump financia entidades que estimulam a prática também no Brasil. O artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define que “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – direito de ser respeitado por seus educadores;

III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;

IV – direito de organização e participação em entidades estudantis;

A criança e o adolescente que não frequentam a escola estão mais sujeitos à violência doméstica, o homeschooling se contrapõe ao princípio basilar no Estatuto referente ao desenvolvimento da cidadania, retira o direito à convivência comunitária, que deve compor com a convivência familiar, e dificulta o amadurecimento de competências socioemocionais. Impede o acompanhamento do processo educativo, o que abre a possibilidade de doutrinação ideológica.

A educação precisa se situar dentro de uma perspectiva maior, não apenas como formação pura e simples, de adestramento, mas numa concepção maior, que ajude o jovem a entrar no mundo do trabalho e a conviver coletivamente em sociedade.

Amazônia e indígenas

A consolidação de uma pauta de violações e ameaças ainda vem na forma de um avanço em temas relacionados com a Amazônia.

Há uma semana, durante o Fórum Econômico Mundial, o vice-presidente Hamilton Mourão deixou claro que o desenvolvimento econômico da região amazônica era uma prioridade, assim como a ampliação de parcerias com o setor privado e investidores estrangeiros.

Agora, ao listar suas prioridades, o governo deixa claro que o objetivo é o de traduzir isso em ação. Uma delas se refere à votação do Projeto de Lei que autoriza a mineração em Terras Indígenas. Quando a ideia foi apresentada, há um ano, movimentos sociais chegaram a realizar denúncias na ONU e relatores internacionais alertaram sobre o risco que tal medida poderia representar para grupos indígenas.

Mas com o governo recebendo de forma aberta representantes de garimpeiros e empresários do setor de mineração, fica claro que o Planalto quer transformar o que hoje ocorre de forma ilegal em uma atividade regular.

Exemplos de Hungria e Polônia

O período de consolidação de uma guinada ideológica também ocorreu em outros governos que, como Bolsonaro, propuseram reformas profundas e polêmicas. Na Hungria, o líder da extrema-direita, Viktor Orban, chegou ao poder em 2010. Naquele momento, pela primeira vez na história do país, seu partido conseguiu dois terços dos assentos no Parlamento. Isso permitia que ele propusesse mudanças na constituição e em leis fundamentais do país.

Mas a Hungria e toda a Europa viviam as repercussões da crise financeira de 2009 e a prioridade era salvar o sistema.

Orban ainda precisava desmontar a sociedade civil e enfraquecer a imprensa para poder consolidar sua agenda de extrema-direita. Isso ocorreria apenas a partir das eleições de 2014 e, de forma mais acentuada, em 2018. Com o controle de dois terços do Legislativo, ele iniciou mudanças em textos sobre religião, cidadania e até mesmo para redefinir o conceito de família.

Na Polônia, o partido Lei e Justiça propôs uma emenda à constituição para ampliar as restrições ao aborto, praticamente tornando o ato um crime em qualquer situação. Mas, sem maioria clara no Parlamento e diante de uma forte oposição, o governo retirou a proposta e buscou um outro caminho.

A via escolhida foi a Corte Constitucional, que acabou aprovando a modificação três anos depois. A acusação, até mesmo por parte da UE, é de que Varsóvia passou uma reforma no Judiciário para poder controlar nomeações aos cargos de juizes, facilitando assim as mudanças que desejasse em leis. O mesmo partido tem ainda feito campanha contra a eutanásia e o acesso de jovens à educação sexual.

 

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