O barulho da dor

O dia estava quente, tão quente que as pessoas transpiravam nitidamente enquanto andavam pela rua. A rua era bem larga, com constante movimento de pedestres, muitos cachorros e pequenos comércios, uma rua típica de vila. Naquela tarde ventava forte, mas não forte o suficiente para que folhas secas voassem do chão para outro lugar, era apenas um vento forte, talvez um prenúncio do que estava por vir. Ali também havia um barulho, barulho de rua! Carros passando, cachorros latindo, crianças brincando; barulho de movimento e da vida cotidiana. Foi então que veio o estrondo. Logo as batidas fortes vindas dos corações acelerados e o som estranho de respirações ofegantes tomaram o lugar: ali estava uma mulher estranha, aos berros. A mulher era tão estranha que usava calça em plena temperatura de 31º graus. A camiseta que um dia havia sido branca, hoje era suja, amarrotada, como se simplesmente não se importasse. O cabelo bagunçado, talvez há semanas sem ser penteado, reforçava a percepção de que aquela mulher já não se apegava a nada, ou talvez o nada significasse a sua vida.

Não usava máscara, apesar da pandemia, despertando a dúvida se seria um mero descuido ou alguém somente sem ânimo de viver. Fato é que pouquíssimas pessoas ali, naquela rua, usavam máscara, mas a mulher estranha… Ah, a mulher estranha tinha tristeza no olhar e revolta no tom de sua voz, o mesmo tom amargo que fez com que a rua silenciasse, somente para ouvir o barulho da alma de uma mulher estranha, uma mulher que havia perdido o filho, para a Covid-19. Um barulho verdadeiramente incomum, afinal, ninguém antes havia feito barulho. Mas ela, não. Ela gritava, como se as pessoas estivessem de fato prestando atenção em sua dor e inquietação. As pessoas, por sua vez, não entendiam tamanha revolta: era apenas mais uma mãe que perdeu seu filho, uma mãe dentre tantas outras que perderam e que ainda perderão… Alguns pensavam: “Não há necessidade de fazer tanto barulho!”. Quem ouvia e via a mulher, via apenas a sua estranheza. E era tão estranha, que se mantinha com a coluna curvada, como se carregasse o peso dos olhares a sua volta; gritava culpando políticos que nem sequer a ouviam. E era tão estranha que chamava o povo de assassino, o povo sem máscara. Assim, como ela.

A mulher era tão estranha, que os donos de comércios saíram para fora de suas pequenas lojas, para comentarem entre si a estranheza, e diziam: “está louca!” e sussurrando, se conectavam e voltavam ao silêncio. Ela seguia pela rua larga, como se tivesse tido uma grande perda. Enquanto mantinha a coluna curvada, seu olhar de tristeza e voz de desespero e desprezo, ela passava olhando nos olhos de cada pessoa. Todos desviavam o olhar. Ela era estranha e fazia barulho.

“Assassinos! Todos vocês que não usam mascara são assassinos! Vocês mataram o meu filho!” Ela seguia e as pessoas não entediam tamanha revolta e barulho. Foi quando outro alguém chegou. Ousando dizer algo pelo olhar, abraçou a mulher estranha, e se interligaram em um silêncio provocador. Todos entenderam que havia sido dito algo naquele abraço, mas eram incapazes de compreender. Eram todas pessoas estranhas. Estranhas de alma.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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