Todo preso é um preso politico? Os Panteras Negras e o MNU como organizações pioneiras em enfrentar o cárcere

O Partido Panteras Negras se destaca como uma das organizações pioneiras em relação à organização e luta dentro e fora das cadeias contra o sistema prisional. No seu programa de dez pontos, os pontos 8 e 9 tratam do sistema penitenciário, sendo que o ponto 8 afirma explicitamente: “Nós queremos a liberdade imediata para todas as pessoas pretas mantidas em prisões e cadeias federais, estaduais, dos condados e municipais”[1]

A organização revolucionária negra na época também se enraizou dentro do cárcere. Em 21 de agosto de 1971, George Jackson, membro da Família da Guerrilha Negra (coletivo de autodefesa fundado por Jackson no interior da prisão) e ligado ao Partido Panteras Negras, foi assassinado na penitenciária de San Quentin, Califórnia. Jackson propunha a “transformação da mentalidade criminal negra em mentalidade revolucionária negra” e, com suas práticas e escritos, teve grande influência em grupos de prisioneiros.

A execução de Jackson por agentes do estado motivou a organização de uma rebelião de prisioneiros em Attica, no dia 9 de setembro de 1971 (pouco mais de duas semanas após o assassinato de Jackson). Os insurgentes declararam suas reivindicações no “manifesto de Attica”, a partir da análise do sistema prisional estadunidense enquanto mecanismo de controle social e racial a serviço do capitalismo e situando a rebelião entre os motins que eclodiam nos bairros negros e em outras penitenciárias espalhadas pelo país. Nelson Rockefeller, o então governador de Nova Iorque, determinou a invasão militar da penitenciária quatro dias depois de sua tomada. No massacre executado pelas forças policiais do estado contra os insurgentes desarmados, ao menos 39 pessoas foram mortas, sendo 29 prisioneiros e 10 reféns, a data ficou marcada como a “segunda-feira sangrenta” (VALENTE, 2018).

Movimento Panteras Negras (Foto: Divulgação/ Steven Kasher Gallery)

No Brasil, a organização inspirada pelos Panteras Negras que foi pioneira em articular a luta dentro e fora do cárcere foi o Movimento Negro Unificado (MNU). Fundado no dia 07 de julho de 1978, em plena ditadura empresarial-militar, o movimento confrontou a ditadura ao sair pra rua pedindo o fim da violência e da discriminação racial. O motivador foi a morte de Robson Silveira da Luz, um feirante morador da periferia da zona leste de São Paulo. Acusado de roubar frutas no trabalho, ele foi levado pela polícia para a delegacia de Guaianazes onde foi preso e torturado até a morte. Naquela época, havia um forte movimento da esquerda brasileira contra a tortura e o assassinato e pela libertação de presos políticos, no entanto, Robson não era considerado um “preso político”, mas um preso comum. Esse fato motivou o MNU a utilizar a palavra de ordem “Todo preso é um preso político”, procurando politizar as prisões comuns, motivadas pelo racismo e pela criminalização da pobreza (JARDIM, 2018). O MNU considerava que nenhum crime à propriedade vale mais que a vida e que, portanto, a esquerda brasileira também devia lutar contra a prisão, tortura e assassinato motivados pelo racismo e violência das classes dominantes contra os setores mais pobres e racializados. Esse apelo não conseguiu engajar setores mais amplos, porém a palavra de ordem “Todo preso é um preso político” segue hoje no repertório das organizações abolicionistas penais.

No ato de fundação do MNU, foi lida uma carta da organização formada por detentos do Carandiru “Centro de Lutas Netos de Zumbi” que conectava a luta pelo direito dos presos nas ruas com a organização e luta dentro do cárcere. A carta se mantém bastante atual, especialmente na crítica à atuação apassivadora do discurso de direitos humanos ainda hoje presentes em torno do tema:

Do fundo do grotão, do exílio, levamos nosso sussurro a agigantar o brado de luta e liberdade dado pelo Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. Nós presidiários brasileiros contamos com nosso grupo unificado contra a discriminação racial. E aqui estamos no lodo do submundo, mas dispostos a dar nossos corpos e mentes para a ação de luta, a denunciar também a discriminação dentro do sistema judiciário aqui no maior presídio da América do Sul. […] Também tem o seguinte: se [direito humano] for algo do qual dependemos da sociedade branca para nos conscientizar, algo que se consiga com docilidade de servos, não apresente! Já estamos fartos de palavras, demagogias, por isto somos um grupo, por isso gritamos sem cessar. Somos negros, somos Netos de Zumbi! (E vovô ficaria triste se nos entregássemos sem luta.). [VALENTE, 2018, P. 66]

O encarceramento em massa seguiu em contínua expansão durante todo o período de redemocratização e nova república (SILVA, YOSHIOKA, 2019), sendo uma política central para a perpetuação do racismo e das extremas desigualdades sociais no Brasil pós abolição. A pandemia marcou uma contínua degradação das condições do cárcere, com a proibicao de visitas, aumento de denuncias de tortura e ausencia de medidas de prevencao ao contágio da Covid – 19, desenceramento ou aumento do atendimento médico, de forma que o período recente tem sido marcado por um massacre silencioso, causando desespero de presos e seus famílias, que sao em imensa maioria negros, tendo acontecido algumas rebelioes e numerosos protestos por melhores condicoes desde o inicio da pandemia. (SILVA, 2020). Como muitos nomes como Suzane Jardim, Juliana Borges, Angela Davis e Michelle Alexander tem enfatizado, é urgente que os movimentos negros e todos aqueles interessados na superação do racismo voltem sua atenção a situação do cárcere, fortelecem esse debate e essa luta, sem isso nao conseguiremos mudar as estruturas racistas de nossa sociedade.

[1] A tradução do programa de dez ponto pode ser lida em: https://autonomistablog.wordpress.com/2017/02/20/o-programa-de-dez-pontos-regras-do-partido-partido-dos-panteras-negras/

Bibliografia:

JARDIM, Suzane “Do corpo biológico ao corpo social: a tortura dos “comuns” e a busca pela radicalidade perdida”. Tortura em tempos de Encarceramento em Massa, 2018, Pastoral Carcerária <https://tinyurl.com/y6hf6bb6>

SILVA, Gabriel; YOSHIOKA, Heloisa, “Notas sobre o cárcere no Brasil, Quilombo Invisível 09 nov. 2019. Disponível : <https://tinyurl.com/y4sjm3t7>

SILVA, Gabriel. “Como a Pandemia colocou o Encarceramento em Massa em Questão?”, Quilombo Invisível, 04 jul.2020. Disponível em: <https://tinyurl.com/yxldp38a>

VALENTE, Rodolfo de Almeida. “A luta antiprisional no mundo contemporâneo: Um Estudo sobre experiências de redução da população carcerária em outras nações.” Pastoral Carcerária, 2018.Disponível em: <https://tinyurl.com/y67q94lv>

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