Pandemia ladeira abaixo – A gente sempre tem que morrer?

No início da pandemia, fomos chamados para uma ocorrência em uma área bem pobre da cidade, acho que foi acidente de moto. Descia uma ladeirona. No bem-lá-embaixo dela, uma multidão de tanta gente da rua, na rua, nas calçadas: lugares que sempre foram extensão de suas minúsculas casas, que se tornam menor a cada criança que chega. 

Era fim de semana. Mesmo em uma cena de acidente-não-grave, crianças em festa com a luzes piscantes da ambulância e do gigante caminhão do bombeiro; bêbados e bêbadas com seus altos sons, seus churrasquinhos, seu lazer de rua, que segue sendo suas casas. Gritavam com humor: “olha o corona”, gargalhavam e se divertiam. E eu pensando, alarmada com o que via, como esta gente vai sobreviver ao vírus deste jeito? Minha mente “fique-em-casa” se chocava  com tanto contato, tão pouco álcool-gel, unânime falta de máscara. Como este meu povo preto, nesta sua morada pobre, vai sair ileso? Ele vai morrer de novo, de novo, de novo, de novo. Ele que tem que morrer sempre. É isso?

Quando me vem a imagem daquele momento, parece a de um sonho confuso, uma realidade paralela. Ali, no fundo da ladeira, no fundo do poço, tudo é “minha-casa”: rua, calçada, casa-de-fulana, casa-de-ciclana. A vida ali tem vizinhança, tem comunidade, tem continuidade do imóvel que vai o nome do proprietário. Aquelas pessoas estavam ficando em casa, obedecendo ao decreto da cidade, que lhe é negada. Para onde mais vai a negrada? Que diferença faz se shopping, cinema e teatro não podem funcionar, se lá nunca foi lugar para eles, para elas. A  negrada vai para onde? Ela só pode ficar em casas.

Não pode sair para  trabalhar. Não pode sair para barzinhos.  Cidade fechada. Não tem UTI garantida. O que disso é novidade para a negrada ladeira-abaixo? Tudo igual. Sem alterações. Segue o baile. Segue às ordens: fica em casa, sem trabalho, isolados da cidade que não os querem, eles, que ali são um corpo-único: preto, que não precisa usar máscaras, já que vive sozinho.

Foto: Antônio Black / Grupo Abaô de Capoeira Angola

Marina Ribeiro Lopes- Sou graduada em Publicidade, mas trabalho como bombeira militar. A partir da Capoeira Angola, passei a atuar no movimento negro sergipano, através do Grupo Abaô de Capoeira Angola e da Auto-Organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria. Sou autora dos textos da página @quarta.as.9 no Instagram e idealizadora do site MercadoNegro.Aju. Atualmente, sou bolsista do Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco (Fundo Baobá).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

Se Roberto Jefferson fosse negro…

Num multiverso de possibilidades infinitas pensemos se Roberto Jefferson...

Educação: direito negado, razão de lutas negras no século XIX

Não é difícil encontrar em circulação nas redes sociais...

Salvem suas lives!

Você já parou para pensar em quantas lives assistiu...

As Ações afirmativas em tempo Espiralar: (re)existência, luta, palavra e memória

“A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões...

para lembrar

É coisa da minha cabeça ou da sua?

O capacitismo é coisa da minha cabeça ou da...

O vírus chegou mas a água do morro ainda NÃO

Os desafios que as comunidades periféricas vêm passando nos...

Ainda tenho esperança

Gostaria de expressar meus sentimentos a todos que como...

COVID-19 e seu impacto nas comunidades negras nos Estados Unidos e no Brasil

A COVID-19 tem exercido um impacto devastador, e as...

Racismo estrutural, negritude e lugar de fala: qual é a importância de pensarmos a trajetória de Anastácia no ensino de história?

RESUMO A partir das contribuições teóricas de Kilomba (2019) e Ribeiro (2017), o presente texto propõe-se a refletir o “lugar de fala” e as suas...

Porque falamos tão pouco (ou quase nada) sobre o legado da escravidão negra nos estudos em Administração?

“Nesta história não há perpetradores..., apenas vítimas” (Santos, 2008, p. 165) Em seu artigo “The repressed memory of Brazilian slavery” (“A memória reprimida da escravidão...

Do navio negreiro pro voo

Mas nega você não pode voar. Os seus chegaram aqui de navio negreiro, e você quer dominar o ar? Oh Nega olha pra você. Pergunta quem...
-+=