Em 2017, a Ordem dos Advogados e Advogadas do Brasil, Seção Piauí, reconheceu simbolicamente Esperança Garcia, uma mestiça escravizada na segunda metade do século XVIII, como a sua primeira advogada. Esperança utilizou a escrita para exigir que as autoridades locais agissem conforme as regras jurídicas e religiosas coloniais. Estas concediam aos súditos prerrogativas simples, como as de se conservarem cristãos, constituírem famílias e batizarem seus filhos. Neste pequeno texto buscaremos socializar essa experiência local em que diversos setores – movimentos sociais organizados – e instituições – universidades e OAB – se uniram na construção de um dossiê histórico situando uma mulher negra e escravizada como símbolo de luta e resistência na contemporaneidade.
Em 6 de setembro de 1770, Esperança redigiu uma petição ao governador da Capitania do Piauí, na qual denunciava a situação que ela, seus familiares e suas companheiras de cativeiro enfrentavam. Desde que o capitão Antônio Vieira Couto, seu proprietário legal, foi administrar a Fazenda Algodões, Esperança foi apartada do seu marido, sendo forçada a trabalhar na casa do senhor, distante da propriedade rural. Além disso, seu filho, uma criança, era brutalmente espancado; quanto a ela, se descrevia como um “colchão de pancadas”. O senhor também impedia as cativas de se confessar, o que já durava três anos, e sua filha ainda estava por batizar. Esperança Garcia terminava a carta solicitando à autoridade colonial que a retornasse ao convívio familiar e que sua filha recebesse o sacramento do batismo.
A singularidade de Esperança reside em dois aspectos: a resistência, pelas vias do direito, e a reivindicação como membro da comunidade política colonial. A população escravizada se valia de diferentes estratégias de resistência e luta contra a escravidão, como as fugas e a formação de quilombos, além dos suicídios e revoltas. Agindo com perspicácia, Esperança Garcia adotou um procedimento típico dos súditos do rei, pedindo em carta o cumprimento das normas e dos costumes, nada além disso. Os dois aspectos informam processos sociais do presente, quais sejam, que a população negra permanece submetida a um quadro de agravamento social cada vez mais amplo e que a resistência pelo direito permanece como uma das várias formas de luta, embora este lhes seja frequentemente negado.
Dessa maneira, o projeto “Esperança Garcia, símbolo de resistência na luta por direitos”, da Ordem dos Advogados e das Advogadas do Brasil – OAB – Seção Piauí, seguiu um esforço, já traçado por outras seccionais da OAB, de tornar visível os crimes praticados por senhores, autoridades e a Igreja durante os mais de 350 anos de escravidão no Brasil. Passados mais de 130 anos, a escravidão, enquanto crime contra a humanidade, não prescreve. Resta ao Estado Democrático de Direito criar instrumentos de reparação e compensação aos que ainda sofrem suas sequelas.
Não estaríamos hoje a discutir sobre as desventuras de Esperança Garcia se não houvesse, já naquela época, a percepção de que os pleitos deveriam constar no mundo burocrático da escrita. Assim, com uma fonte produzida por uma mulher negra escravizada, a identidade negra piauiense é trazida à tona a partir das experiências de vida de escravizadas e escravizados africanos e seus descendentes que aqui estiveram. Revisitar esse passado nos ajuda a identificar essas vivências da cultura negra em nosso cotidiano, sobretudo em nosso patrimônio imaterial, evidenciado em nossa musicalidade, nas artes e nas tradições religiosas e populares.
É comum entre os piauienses, ainda que em âmbito restrito, a afirmação da importância histórica da carta. No entanto, muitos membros do movimento negro reclamam do pouco conhecimento sobre a vida de Esperança Garcia, resultado do descaso da sociedade e visto como consequência de sua condição de negra escravizada. A atitude de Esperança, isto é, o uso de seu letramento como potencial reivindicatório, deixa evidente sua astúcia e sua resistência ao analisar as possibilidades de expor no papel suas necessidades, relacionando-as com um contexto mais amplo, sobretudo, o jurídico-administrativo e o religioso, ao associar direitos – o de não ser espancada injustamente – e o de clemência – o batismo dos seus filhos –, acreditando na possibilidade de ter seus pedidos atendidos pelas autoridades coloniais.
O fato é que desde sua divulgação pelo antropólogo e historiador Luiz Mott em 1979, a “Carta” foi reconhecida e elencada como símbolo de resistência negra e utilizada para a construção de uma identidade negra, especialmente uma identidade das mulheres negras piauienses, com ênfase na resistência. Ou seja, Esperança Garcia, além de se fazer presente em diversos trabalhos historiográficos que tratam da escravidão no Piauí, foi transformada em símbolo de resistência, em heroína negra do Estado.
A carta de Esperança Garcia é um importante instrumento para ressignificar as dores da escravidão, com a construção de uma memória coletiva e de uma identidade negra, tirando-a do mundo da escravidão e reposicionando-a na história como heroína da resistência. Em alguma medida, isso já ocorreu, com a Lei 5.046, de 7 de janeiro de 1999, que instituiu o dia seis de setembro, data em que a carta foi escrita, como o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí. A referida lei pode ser afirmada como lugar de memória que se estabeleceu oficialmente, como regime de verdade, legitimando o reconhecimento dos piauienses negros nesse lugar. A proposta de reconhecimento simbólico de Esperança Garcia como advogada pretende ser também um lugar de memória para o povo negro piauiense e brasileiro.
A Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-PI assumiu a tarefa de contribuir para a efetividade do direito à memória e à verdade sobre a história do Piauí no enfrentamento às omissões e às distorções sobre o direito do povo negro. Ao fazer isso, pretende fortalecer as lutas do presente protagonizadas pelas “Esperanças Garcias” contemporâneas, com seus filhos e filhas sendo exterminados pelas políticas urbanas – como as políticas que ensejam a “guerra às drogas”. O trabalho da comissão fortalece ainda a advocacia como lugar de luta por direitos, contra injustiças e em defesa da democracia.
A luta por direitos é a perspectiva adotada na carta da Esperança Garcia, que denuncia a falta de reconhecimento de pessoas negras como membros da comunidade política colonial. Na contemporaneidade, a luta é para que o direito se configure como trabalho de memória a ressignificar o presente, com o protagonismo das lutas do povo negro. O ato de Esperança Garcia expressa a personalização da pessoa escravizada, que localiza o seu feito no contexto das lutas contra a escravidão a partir do direito, como um fazer de um sujeito de direitos que pleiteava, na institucionalidade, a sua participação como membro da comunidade política.
Assista ao vídeo do historiador Mairton Celestino no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas);
Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais).
Mairton Celestino
Doutor em História, docente da UFPI e Coordenador do IFARADA (Núcleo de Africanidades e Afrodescendência) e do NUPEDOCH (Núcleo de Pesquisa e Documentação em História); E-mail: [email protected]
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