No início da pandemia, fomos chamados para uma ocorrência em uma área bem pobre da cidade, acho que foi acidente de moto. Descia uma ladeirona. No bem-lá-embaixo dela, uma multidão de tanta gente da rua, na rua, nas calçadas: lugares que sempre foram extensão de suas minúsculas casas, que se tornam menor a cada criança que chega.
Era fim de semana. Mesmo em uma cena de acidente-não-grave, crianças em festa com a luzes piscantes da ambulância e do gigante caminhão do bombeiro; bêbados e bêbadas com seus altos sons, seus churrasquinhos, seu lazer de rua, que segue sendo suas casas. Gritavam com humor: “olha o corona”, gargalhavam e se divertiam. E eu pensando, alarmada com o que via, como esta gente vai sobreviver ao vírus deste jeito? Minha mente “fique-em-casa” se chocava com tanto contato, tão pouco álcool-gel, unânime falta de máscara. Como este meu povo preto, nesta sua morada pobre, vai sair ileso? Ele vai morrer de novo, de novo, de novo, de novo. Ele que tem que morrer sempre. É isso?
Quando me vem a imagem daquele momento, parece a de um sonho confuso, uma realidade paralela. Ali, no fundo da ladeira, no fundo do poço, tudo é “minha-casa”: rua, calçada, casa-de-fulana, casa-de-ciclana. A vida ali tem vizinhança, tem comunidade, tem continuidade do imóvel que vai o nome do proprietário. Aquelas pessoas estavam ficando em casa, obedecendo ao decreto da cidade, que lhe é negada. Para onde mais vai a negrada? Que diferença faz se shopping, cinema e teatro não podem funcionar, se lá nunca foi lugar para eles, para elas. A negrada vai para onde? Ela só pode ficar em casas.
Não pode sair para trabalhar. Não pode sair para barzinhos. Cidade fechada. Não tem UTI garantida. O que disso é novidade para a negrada ladeira-abaixo? Tudo igual. Sem alterações. Segue o baile. Segue às ordens: fica em casa, sem trabalho, isolados da cidade que não os querem, eles, que ali são um corpo-único: preto, que não precisa usar máscaras, já que vive sozinho.
Marina Ribeiro Lopes- Sou graduada em Publicidade, mas trabalho como bombeira militar. A partir da Capoeira Angola, passei a atuar no movimento negro sergipano, através do Grupo Abaô de Capoeira Angola e da Auto-Organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria. Sou autora dos textos da página @quarta.as.9 no Instagram e idealizadora do site MercadoNegro.Aju. Atualmente, sou bolsista do Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco (Fundo Baobá).
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