Opinião, por Ivanir dos Santos (babalaô): “Fé no futebol! Que as palavras do jogador Paulinho continuem ecoando”

A fé no futebol! Faz um bom tempo que venho pensando em escrever uma brevíssima reflexão sobre a combinação social entre religião e futebol. Se fôssemos fazer uma leitura momentânea sobre as manifestações religiosas, seguidas depois das comemorações de um gol ou da vitória de um campeonato, facilmente iríamos concluir que o cristianismo é exaltado em sua grande maioria, e tais manifestações não são questionadas. 

Bom, antes de prosseguir com a reflexão, quero aqui pontuar que não estou dizendo que tais manifestações cristãs não devam acontecer,  até porque vivemos em um país ‘laico’ e as liberdades religiosa e de culto precisam ser respeitadas! O ponto que aqui quero chamar a atenção é para o fato de que, no Brasil, as diferentes manifestações religiosas, longe das vivências e experiências cristãs, são demonizadas, apedrejadas e proibidas. O Brasil é o país que mais mata jovens negros e periféricos e desponta com um dos maiores índices de feminicídios, homofobia e transfobia. É um país que ainda vive da falsa ideia de democracia racial, da glorificação do passado colonial e da negação das desigualdades sociais e econômicas. É um país com um dos maiores casos de intolerância religiosa, cometidos contra adeptos das religiões de matrizes africanas. 

Segundo os dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), as denúncias de intolerância religiosa pelo Disque 100 aumentaram 41,2% no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. Esses dados, se comparados aos do mesmo período de 2018, apontam um aumento de 136% de denúncias, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). 

Não podemos deixar de mencionar as sórdidas ações dos ditos “traficantes evangélicos” que vêm expulsando, amedrontado sistematicamente religiosos de matrizes africanas e proibindo suas práticas e cultos sagrados. Então o que levaria um jovem atleta de 21 anos e com uma grande carreira promissora a se manifestar em âmbito nacional e internacional contra todas as desigualdades vividas por milhares de pessoas no Brasil? O que levaria um jovem atleta de 21 anos a afirmar que as práticas das religiões de matrizes africanas são as bases da sua filosofia de vida? Acredito que talvez essas possam ser inúmeras das indagações que muitas pessoas possam estar se fazendo depois da divulgação da carta pública escrita pelo atleta Paulo Henrique, intitulada “Que Exu ilumine o Brasil”.

Cá do meu canto, leio e releio a carta e fico refletindo sobre a importância das nossas lutas cotidianas pela igualdade, respeito, equidade e tolerância religiosa. Como bem escreve Grada Kilomba no livro “Memórias da Plantação”, “só quando se reconfiguram as estruturas de poder, é que as muitas identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de conhecimento.” (KILOMBA, 2019: 13)

Destarte, não podemos jamais nos esquecer que o Brasil traz, em sua gênese social, cultural, religiosa e espiritual, as experiências e práticas indígenas e dos africanos que aqui aportaram na condição de escravos — práticas essas que foram duramente reprimidas, criminalizadas e marginalizadas. Assim, as palavras escritas pelo jogador Paulinho ecoaram e precisam continuar ecoando cotidianamente em nossa sociedade, para que possamos reconfigurar as nossas estruturas e noções de conhecimento. Desse modo, as práticas espirituais cotidianas, filosofia de vida para muitos religiosos e religiosas que não professam o cristianismo, possam também ganhar espaços e manifestações depois da concretização de um gol, de uma vitória de final de campeonato.

“Que Exu ilumine o Brasil”, pois um país que ainda vive da glorificação da sua história colonial,  promove o racismo, as desigualdades e as intolerâncias jamais poderá fortalecer a conscientização coletiva. Precisamos reconfigurar as nossas estruturas.

Laroyê Exú!   


O babalaô Ivanir dos Santos é doutor em História Comparada pela UFRJ, conselheiro do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) há 12 anos. Há 40 anos, atua pelas liberdades dos direitos humanos. Em 2020, recebeu o prêmio Internacional Religious Freedom (IRF) do Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos, durante evento em Washington.

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