Casos de perda de guarda de crianças por mães praticantes de religiões de matriz africana alarmam especialistas

Racismo religioso aumenta no país e advogados denunciam falta de amparo legal a fiéis de umbanda e candomblé

Casos de intolerância religiosa contra religiões de matriz africana têm pautado disputas na Justiça e até a perda da guarda de filhos por fiéis. Histórias que dividem famílias por atos de racismo religioso ocorreram nos últimos meses em todo o país e alarmam especialistas.

Na Bahia, a Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial registrou, de janeiro a 21 de julho deste ano, 19 casos de racismo religioso. O número já corresponde a 65% do total de 2020, quando foram feitas 29 denúncias. No Rio, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) recebeu, até maio deste ano, denúncias de 19 casos contra religiões de matriz africana, dois deles envolvendo crianças.

Em julho, a Justiça de Campinas absolveu uma mulher de 33 anos denunciada pelo crime de “lesão corporal com violência doméstica agravada” após um ritual em que iniciou a filha no candomblé. Mas ela segue sem a guarda da filha, que não vê há seis meses. No ano passado, em Araçatuba, a manicure Kate Belintani teve a guarda da filha de 11 anos suspensa, por 17 dias, depois de a avó materna entrar na Justiça alegando que a menina sofria maus tratos e abuso num centro de candomblé frequentado pela menina e seus pais.

Especialistas definem racismo religioso como agressão e ataque físico e/ou simbólico a praticantes de religião de matriz africana, notadamente o candomblé e a umbanda, e a suas casas de culto, incluindo os terreiros.

Em João Pessoa, há um ano e oito meses, a mãe-de-santo Josileide da Gama perdeu a guarda dos filhos, de 11 e 15 anos, para a irmã. A denúncia, tal qual descrita pelo Conselho Tutelar na capital paraibana, diz que a mãe teria colocado os garotos “em situação de risco constante dentro da própria casa, com a realização de atividades religiosas regadas a bebidas e até altas horas, com a presença de pessoas de conduta duvidosa”. Informa ainda que a guarda seria suspensa pois a mãe-de-santo havia se comprometido “a não mais realizar os rituais religiosos na casa onde mora com os filhos e a afastar o pai-de-santo de sua residência, o que não ocorreu”.  

Foi emitida, ainda, uma medida protetiva para evitar que a mãe se aproximasse dos filhos – ela precisa ficar a pelo menos 500 metros de distância. Josileide da Gama não pode mais abraçar ou beijar os filhos. Também está proibida de mandar mensagem ou telefonar para eles. Ela conta ainda que não foi feito qualquer laudo para atestar violência física ou psicológica contra as crianças e que a primeira visita de assistente social à sua casa só se deu essa semana.

— Tenho um terreiro em casa e minha família não aceita. Já fui ameaçada e agredida por conta da religião. É muito doloroso, meus filhos fizeram aniversário e não pude falar com eles, foi muito triste. Mas nunca pensei em abandonar a religião, pois tem muita gente que bate à minha porta, que precisa de mim — conta.

O GLOBO tentou falar com a irmã de Josileide, mas ela não quis se pronunciar.

De acordo com o advogado Franklin Soares, presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PB, há quatro nulidades no processo contra a mãe-de-santo, ou seja, erros graves que deveriam anulá-lo. Uma delas é a de que a mãe não teve acesso a um advogado ou defensor público. A Comissão só tomou conhecimento do caso depois que os filhos já haviam sido afastados da mãe. 

— Ela perdeu a guarda sem direito à defesa. A denúncia do MP é recheada de termos preconceituosos — diz Soares.  

Na peça, obtida pelo GLOBO, rituais religiosos, por exemplo, são classificados como “farra”. Procurado, o MP-PB não respondeu.

Coordenador-Executivo do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (IDAFRO), o advogado Hédio Silva diz que tem observado maior interferência de conselheiros tutelares nos casos de perda de guarda, que acompanha de perto. O IDAFRO foi criado há dois anos por advogados e profissionais liberais justamente para orientar e assessorar praticantes das religiões afro-brasileiras na defesa de seus direitos, acesso à Justiça e legalização de templos. A organização sem fins lucrativos oferece plantão permanente para atuar em denúncias de intolerância religiosa.

— Respeito os conselheiros sérios, mas para muitos o serviço virou algo como um puxadinho de religiões neopentecostais, e essa movimentação está mais agressiva. Ela vem do que percebo ser a privatização de uma instância do sistema de proteção da infância e adolescência por um projeto religioso. Algo sistemático e beligerante. A crítica dessas pessoas é à macumba. É direcionada e tem nome: racismo religioso — diz o advogado.

As mais recentes eleições para conselheiros tutelares, em 2019, foram marcadas por disputas ideológicas ostensivas entre candidatos se apresentando como representantes de alas da Igreja Católica, de denominações evangélicas, além dos postulantes identificados com temas progressistas. Reportagens do GLOBO mostraram como as vagas nos conselhos, que têm peso nas denúncias de maus tratos a crianças, se tornam muitas vezes trampolins para candidaturas às câmaras municipais.

Coordenadora do grupo de pesquisa Kékeré, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uerj, Stela Caputo tem observado maior frequência na perda de guarda de menores de idade justificadas pela iniciação de crianças em religiões de matriz africana. Em iorubá, kékeré significa pequeno, justamente porque o grupo centra suas pesquisas nas crianças de terreiros.

— A partir de uma denúncia, seja de parente, vizinho, ou qualquer pessoa que se ache no direito de definir como o outro deve viver, os conselhos tutelares acionam o MP. Uma iniciação no candomblé pode ser entendida como violência contra a criança. As famílias precisam conhecer seus direitos, a garantia da liberdade religiosa delas, inclusive das crianças — explica a pesquisadora.

Em Cabo Frio, uma jovem de 22 anos conta ter sofrido ato de racismo religioso que a fez temer perder a guarda da filha. Separada do marido desde novembro, em janeiro ele levou a bebê de oito meses da casa da ex-companheira após a mãe tê-la iniciado no candomblé.

— Quando mandei mensagem informando que ela tinha feito o santo, ele fez ameaças, até de me bater. Minha filha estava mamando, ele chegou de bicicleta e tirou ela dos meus braços — conta a dona de casa, que registrou o caso na Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) da cidade da Região dos Lagos e conseguiu recuperar a menina horas depois.

A Polícia Civil informou que o pai da menina foi indiciado por injúria por preconceito e ameaça. O inquérito foi relatado ao Ministério Público. Em nota, o MPRJ informou que “foi oferecida denúncia por crime de ameaça” e que “o crime de injúria qualificada foi arquivado por se entender que as expressões atribuídas ao acusado não tiveram o intuito de ofender a vítima”. O pai da criança não respondeu aos questionamentos feitos pelo GLOBO.

A dona de casa tentou, mas não conseguiu registrar o caso como intolerância religiosa:

 — Faria tudo de novo, pois foi pelo bem dela. Sou da religião e o que é bom para ela é bom para mim.

O babalorixá da vítima, do terreiro Ilê Omi Axé Ayrá, na vizinha São Pedro da Aldeia, acompanhou a filha de santo à delegacia. Há quatro anos, ele conta, seu terreiro foi invadido e objetos sagrados revirados por homens armados com barras de ferro.  O sacerdote diz que desde então tem medo de sair à rua sozinho:

— Minha maior motivação de vida é minha fé, mas às vezes tenho vontade de parar, pois tenho medo de ser assassinado por ser babalorixá.

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