A era do reconhecimento

É difícil eliminar as múltiplas esferas de injustiça que estruturam uma sociedade sem que a questão da diversidade seja colocada no centro do debate político

“Entre a esquerda e a direita, continuo preta”. A frase desconcertante da intelectual e militante negra Sueli Carneiro sintetiza a insuficiência da chamada política tradicional em enfrentar a questão de setores historicamente discriminados.

Mesmo a esquerda tradicional, historicamente mais empática aos processos de inclusão, demonstra dificuldade em lidar com as diversas formas de discriminação que bloqueiam a plena realização da dignidade para determinados grupos. Nesse sentido, é difícil eliminar as múltiplas esferas de injustiça que estruturam uma sociedade sem que a questão da diversidade seja colocada no centro do debate político contemporâneo. Por isso Sueli precisa enfatizar que continua “preta”. Sem que a dignidade dessa condição seja reconhecida, não avançaremos um passo.

O conceito moderno de dignidade, que no passado designava posições de honra e distinção, foi formalmente democratizado por autores como Rousseau e Kant, exigindo que toda pessoa seja merecedora de igual respeito e consideração, pelo simples fato de ser pessoa.

Essa aspiração de natureza moral, cravada em declarações de direitos e tantas constituições, não tem sido capaz, no entanto, de eliminar as mais variadas formas de subordinação, exclusão e violência associadas a características como cor, etnia, gênero, religião ou orientação sexual da pessoa. A inferiorização e estigmatização de determinados grupos, além de ferir a dignidade de seus membros, reduz a capacidade dessas pessoas de fruírem os mesmos direitos universais que beneficiam a população não discriminada e vulnerável.

Essa “falha” da linguagem dos direitos humanos foi apontada por autores tão distintos como o conservador Edmund Burke, o liberal utilitarista Jeremy Bentham e o socialista Karl Marx, ao analisarem a Declaração Francesa de 1789. Embora suas críticas sejam naturalmente distintas, todos apontam para o problema da ineficácia que direitos dotados de um alto grau de abstração irão enfrentar.

Ao longo dos séculos, a gramática dos direitos foi sendo corrigida. Direitos de grupos vulneráveis, como crianças ou deficientes; hipossuficientes, como trabalhadores; ou de grupos historicamente discriminados, como mulheres e negros, foram sendo reconhecidos em novos tratados e leis específicas.

Ainda assim, a realização desses direitos depende de um reconhecimento que transcenda a dimensão jurídica formal. Para que os direitos se tornem realidade é fundamental que o pertencimento a um determinado grupo deixe de ser objeto de discriminação, passando a ser dignificado como experiência, tanto pelos próprios membros do grupo, como pelo demais membros da sociedade.

Disso decorre que as múltiplas demandas por reconhecimento contemporâneas não podem ser substituídas pela tradicional reivindicação por igualdade formal ou de oportunidades. É indispensável que a discriminação que priva alguém de ser reconhecido como sujeito pleno de direitos seja detectada e eliminada, para que a efetiva igualdade possa se realizar.

Para que a atrocidade da semana não fique sem registro; não basta dizer que todos têm direito à educação. É preciso reconhecer que mulheres menstruam. Que, se não dispõem de recursos para adquirir absorventes, perdem aulas, além de terem violadas a respectiva dignidade. Logo, a política de reconhecimento é indispensável para a eliminação de determinadas esferas de injustiça.

Nas últimas semanas a Folha foi palco desse difícil, mas inevitável debate. Para que o diálogo possa avançar, além de coragem, necessário revisitarmos nossas premissas e, sobretudo, termos muita disposição para ouvir aquilo do que discordamos.

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