Ex-escravos terem tido escravos não foi ‘empreendedorismo capitalista’

Análise colonizada compromete-se só com macroexplicações ancoradas em números e tabelas

Ainda há panos para manga na polêmica em torno do artigo publicado por um colunista da Folha sobre “As Sinhás Pretas da Bahia”, livro de Antonio Risério. Causou forte espécie no texto o retrato das sinhás como “empreendedoras capitalistas” com recursos e escravos. O risco apontado é o de cobrir com tintas pitorescas tópicos sérios do sofrimento colonial-escravista no Brasil.

Mas esse assunto tem idade longeva. Basta ler “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que Machado de Assis eterniza como personagem conceitual o escravo Prudêncio: uma vez libertado, reorganiza a sua poupança… comprando um escravo.

O fenômeno é antigo, com nome latino: servus vicarius, isto é, o escravo do ex-escravo. Por mais estranho que pareça, o cativo era verdadeira moeda de troca na sociedade escravista. Em fins do século 18, na Bahia, aqueles provenientes da Costa da Mina (área que hoje abrange Benin, Nigéria e Togo) chegavam como moeda de troca africana para a aquisição de fumo produzido no Recôncavo.

E depois, muito além da Bahia: “Do senhor da grande fazenda (numerosa escravaria) pode-se chegar até a viúva que tem um único escravo, o qual aluga para viver. Todos os que podem têm escravos, da Igreja ao liberto” (Carlos Lessa).

Isso é “empreendedorismo capitalista”? Por favor, não! A acumulação gerada pela apropriação primitiva de um excedente não é capitalista. Capital é o excedente capaz de captar outro, isto é, uma mercadoria que serve como “um valor que suga a força criadora de valor” (Karl Marx), portanto, mais-valia. A prosperidade das ditas “sinhás pretas”, assim como de outros grupos em regiões diversas, resultava da notória dissimetria de processos acumulativos por parte de famílias e agrupamentos afros.

Esses processos ocorriam tanto por poupança nas atividades ditas “de ganho” quanto por reservas monetárias auferidas em trocas de comércio. Era assim que irmandades conseguiam pagar pela libertação de escravos ou então que determinados libertos investissem na forte “moeda” vigente, o escravo. Por outro lado, houve singularidades na vicissitude escravista.

Boa parte da diáspora nagô era composta de presos políticos, muitos dos quais de bom nível intelectual. Da Europa vinham degredados; da África, príncipes e sacerdotes.

A princesa Otampê Ojaró, filha gêmea do Alaketu (rei de Ketu), foi a fundadora do candomblé Ketu na Bahia. Esse é o tipo de fato que requer aprofundamento compreensivo, pois não comparece na análise colonizada, comprometida apenas com macroexplicações ancoradas em classes sociais e respaldadas em números e tabelas.

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