“Eu era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei feia, como a sinhá sempre dizia que todos os pretos eram (…). E assim foi até o dia em que comecei a me achar bonita também, pensando de um modo diferente e percebendo o quanto era parecida com a minha mãe”. Essa passagem do livro Um defeito de cor (Record, 2006), da mineira Ana Maria Gonçalves, apresenta pensamentos e sensações da protagonista Kehinde, uma mulher africana que é trazida escravizada para o Brasil ainda criança, no século 19, consegue obter sua liberdade, sobrevive como quituteira na Bahia, volta para a África e, ao fim da vida, retorna ao Brasil para encontrar seu filho. Ao longo da travessia, a personagem narra, em primeira pessoa, uma história marcada por lutas, mortes, violências e escravidão.
Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em julho de 2023, a escritora declarou que sua obra mais conhecida foi, em primeiro lugar, algo que ela gostaria de ter lido por não ter achado nada do gênero publicado. Também disse: “O livro ajudou a me entender, ao estudar a História, de onde a gente vem, a população afro-diaspórica. Esse arquivo a gente traz no corpo”. Segundo Gonçalves, foram cinco anos de trabalho, incluindo dois de pesquisa, um de escrita e dois de reescrita. “O racismo, como instrumento político do capitalismo, coloca essa população como tábula rasa para construir essa imagem romântica que os europeus tinham do Novo Mundo”, destacou na entrevista.
A protagonista Kehinde é inspirada em mulheres negras reais, como a ativista Luiza Mahin, trazida à força da África ao Brasil, e que teria protagonizado a luta abolicionista no século 19. Para criar essa fabulação, Ana Maria Gonçalves se baseou em documentos, como jornais e revistas de época, testamentos, cartas de alforria e de amor. O enredo de Um defeito de cor também serviu de pano de fundo, em 2022, para uma exposição homônima que chega neste mês ao Sesc Pinheiros [Leia mais em Literatura exposta].
Segundo Marcelo Campos, um dos curadores da exposição, ao lado de Amanda Bonan e Ana Maria Gonçalves, a mostra é dedicada a um público que tenha lido o livro ou não. “Dividimos o espaço em uma grande roda com dez núcleos, em referência aos dez capítulos de Um defeito de cor. Começamos com artes africanas, pois a obra também se inicia lá. A maioria (90%) dos artistas participantes é negra e está em atividade. Abordamos temas como travessia do Atlântico, escravidão, empreendedorismo negro, amores, sororidade, religião, luto e lutas”, explica Campos.
O curador conta que leu o livro em 2020 e ficou muito impressionado com a pesquisa histórica por trás da narrativa. “A exposição traz o imaginário da obra, um mergulho nesse universo de orixás, árvores sagradas e baianas quituteiras, por meio de interpretações dos artistas”. A curadora Amanda Bonan explica que ficção e realidade se misturam na exposição. “A gente parte do ficcional, sem pretensão de ser algo biográfico. O grande lance é manter o público na dúvida. Inclusive, esta é uma reivindicação do movimento negro: o direito à fabulação, à invenção”, ressalta. Segundo Bonan, a escritora se inspirou em uma carta que Luiz Gama escreveu para a mãe, Luiza Mahin, e a exposição apresenta um vídeo em que o ator Lázaro Ramos lê esse documento. “A verdadeira carta é do filho para a mãe, foi ele quem passou a vida toda buscando por Mahin. Ana Maria, então, constrói e adensa essa personagem a partir da descrição de Gama”, destaca Bonan. Para a curadora, essa é uma exposição sobre o Brasil colonial do século 19, “e como as mulheres negras viviam nesse ambiente de racismo, exclusão, espiritualidade, festas, força e resistência”, resume.
LITERATURA EXPOSTA
Sesc Pinheiros recebe a exposição Um defeito de cor com obras inéditas e peças do desfile de 2024 da Escola de Samba Portela
Inspirada na premiada obra literária da escritora Ana Maria Gonçalves, a exposição Um defeito de cor chega ao Sesc Pinheiros a partir de 25/4. A mostra, idealizada e concebida pelo Museu de Arte do Rio (MAR), com parceria institucional da Organização dos Estados Ibero-
-Americanos (OEI), conta com mais de 370 obras de arte. Entre elas, desenhos, pinturas, esculturas, fotografias, vídeos, áudios, tecidos, objetos e instalações, feitas entre os séculos 19 e 21 por cerca de 140 artistas brasileiros e internacionais, sobretudo africanos.
A itinerância de São Paulo apresenta obras inéditas, como um retrato de Ana Maria Gonçalves feito pela artista carioca Panmela Castro e um grande mural na entrada da unidade – pintado pelo artista Emerson Rocha. A mostra também inclui fantasias, adereços e croquis do desfile de 2024 da Escola de Samba Portela, que homenageou o livro Um defeito de cor em seu samba-enredo, sob o comando dos carnavalescos Antônio Gonzaga e André Rodrigues. De acordo com Marcelo Campos, que assina a curadoria da mostra ao lado de Amanda Bonan e Ana Maria Gonçalves, o público ainda verá, pela primeira vez, a pintura criada pelo artista paulistano Moisés Patrício em que retrata uma cena de terreiro de candomblé, e esculturas do paraibano Thiago Costa, que utiliza ferramentas e instrumentos religiosos de terreiro em seu trabalho.
A arquiteta Aline Arroyo assina a expografia, que contou com a consultoria de Ayrson Heráclito, e a paisagem sonora é do pesquisador e músico Tiganá Santana, em colaboração com Jaqueline Coelho. Segundo Juliana Braga de Mattos, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, a realização de Um defeito de cor resulta de um ativo trabalho de parcerias com outras instituições culturais do país, a exemplo do MAR. “Esse projeto é motivo de grande entusiasmo ao permitir que novos públicos visitem uma exposição sobre essa obra literária, considerada fundamental para entender a diáspora africana e suas resistências no Brasil, evocadas em obras e instalações de artistas visuais contemporâneos”, destaca.
PINHEIROS
Um defeito de cor
Curadoria de Ana Maria Gonçalves, Marcelo Campos e Amanda Bonan. De 25 de abril a 1º de dezembro. Terça a sábado, das 10h30 às 21h. Domingos e feriados, das 10h30 às 18h. GRÁTIS.