Diante da falta de explicações das autoridades, o cantor lírico Jean William, de Barrinha (SP), acredita que foi vítima de racismo estrutural em uma abordagem policial durante uma travessia de balsa no litoral paulista.
O tenor de Barrinha (SP), conhecido por já ter cantado para personalidades como o Papa Francisco e o príncipe de Mônaco, e por seu trabalho em parceria com o maestro João Carlos Martins, relatou ter sido abordado aos gritos e com uma arma apontada na cabeça por policiais militares enquanto seguia de carro de Santos para o Guarujá com um amigo na última quinta-feira (27), sem uma motivação apresentada pelos agentes.
“Eu estava dirigindo um carro que era um carro de uma marca famosa, enfim, a única coisa que me leva a crer é que eu era um indivíduo negro dirigindo um carro de alto padrão. E eu conheço muitos casos de pessoas que são abordadas exatamente do mesmo jeito, com a mesma truculência”, conta.
Além de tornar público o episódio nas redes sociais, William relatou o caso à Ouvidoria da Polícia Militar, que prometeu pedir uma apuração à Corregedoria da corporação, assim que a denúncia fosse registrada.
“Esse caso é da Ouvidoria do estado. Eu falei com o ouvidor, relatei tudo que aconteceu e agora vamos esperar a resposta da ouvidoria, daí por adiante”, afirma o cantor.
A PM informou que a abordagem seguiu princípios legais e técnicos, e que nenhuma denúncia ainda tinha sido apresentada
A abordagem
Jean William conta que, na última quinta-feira, pegou uma balsa com um amigo em Santos para chegar ao Guarujá, onde passaria o dia, e que, devido ao calor, permaneceu dentro do automóvel, com ar-condicionado ligado e vidros fechados.
Enquanto esperava a saída da embarcação, ele relata que foi submetido a uma abordagem inesperada e truculenta dos policiais.
“A gente estava lá conversando, de repente, quando eu olho pra frente tem um policial apontando a arma na minha direção e por um milésimo de segundo eu fui tentando entender qual era o problema, o que estava acontecendo e aí eu peguei e levantei a mão, fiquei com as mãos pra cima assim, fui saindo com as mãos pra cima com muito medo porque tinha uma arma apontada na frente”, diz.
Ao descer do carro, o cantor conta que viu outra arma apontada na direção dele, por parte de outro agente, enquanto era questionado sobre drogas e antecedentes criminais.
“Eu fiquei ali em um beco, com as mãos pra cima, e aí ele já começou a falar: tem droga no carro? Você já foi preso? Esse carro é seu mesmo? E falei que sim, obviamente, que o carro era meu, que eu nunca tinha sido preso nem que tinha droga no carro.”
O clima começou a se acalmar, de acordo com o tenor, depois que ele apresentou os documentos e deu mais detalhes pessoais aos policiais.
“Ofereci o documento pra ele com medo de pegar no bolso e causar um movimento brusco, depois ele pediu o documento do carro e aí reiterou se a gente tinha sido preso já ou não e tal, e perguntou as nossas profissões, o que cada um fazia. Meu amigo falou que era farmacêutico, eu falei que era cantor lírico, aí ele ficou olhando meus documentos, tirando foto e fazendo provavelmente o padrão de checagem da polícia”, afirma.
Segundo o tenor, um dos policiais chegou a questioná-lo se ele havia feito algo suspeito que motivasse a abordagem. Jean William mencionou uma manobra corriqueira, em baixa velocidade, para desviar de um caminhão para conseguir entrar na balsa, mas não acreditando que aquilo fosse suficiente para causar alarde aos policiais. Ainda assim, nenhuma justificativa ficou evidente por parte dos PMs, de acordo com o cantor.
“Eu falei, olha moço, única coisa estranha foi que quando eu estava entrando na balsa eu não vi um caminhão que estava do meu lado e eu desviei um pouquinho meu carro, mas não estava em alta velocidade, eu estava entrando na balsa. Aí ele falou: pode ser que isso tenha de alguma forma tornado você suspeito e ter causado uma denúncia. Aí eu perguntei: então, mas denúncia do quê? E ele não respondeu nada.”
Depois de ter os documentos de volta, a falta de explicação, segundo Jean William, permaneceu. “A gente seguiu viagem sem entender o que tinha acontecido. Ninguém deu uma explicação, ninguém pediu desculpas”, relata.
Luta contra o racismo
Hoje com uma carreira de sucesso no Brasil e no exterior, com passagem pelos principais teatros do mundo, Jean William lutou muito não só para mostrar seu talento como também para vencer as barreiras do preconceito.
Ainda antes de ser revelado como solista da Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-SP, comandada pelo maestro João Carlos Martins, e de se apresentar em países como Itália, Emirados Árabes, Índia, Argentina e Estados Unidos, o promissor tenor chegou a ouvir comentários preconceituosos de pessoas que consideravam estranho um negro cantando músicas em italiano.
O preconceito vencido por Jean William partiu até mesmo de uma professora de música que, segundo ele, o orientou a seguir por uma carreira que não fosse a do canto lírico porque “não existem príncipes negros.”
Para ele, a forma com que foi recebido pelos policiais no litoral paulista foi mais um episódio a superar dentro de uma realidade de discriminação que insiste no país, que está muito além das falas preconceituosas.
“Existem muitos relatos sobre abordagens agressivas. A gente conhece muito bem como é que funciona a estrutura do racismo no Brasil, que às vezes não é você chamar alguém de macaco só, mas é toda uma abordagem, todo um sistema que trata o negro quando ele está muito ‘fora’ do seu ambiente”, analisa.