Caso de dona Maria de Moura pede urgência no combate ao crime de escravidão

Ao denunciar mãe e filho, Justiça avança para reparar atos de ofensas e dor

Quantas pessoas brancas alguém aqui conhece que passou um, dez, 20, 40, 72 anos em regime análogo à escravidão? Tenho curiosidade em saber. Conte-me nos comentários.

É estranha essa pergunta, mas ela tem sua lógica para um país racista como o Brasil, que teve por mais de 350 anos a escravidão negra e africana como alavanca do seu sustento e da própria economia de pessoas brancas.

Compreende-se o que é o racismo quando nos chegam ocorrências como a de dona Maria de Moura. Esses relatos crescem no país na mesma proporção em que aumenta o número de vítimas em ambientes domésticos, submetidas a condições humanas degradantes, sem qualquer tipo de direito trabalhista, como férias, salários e bem-estar social —apesar dos protestos e denúncias, feitos pelas mídias sociais e pelos jornais, como esta Folha.

O caso de dona Maria de Moura, obviamente, está dentro da lógica das classes cada vez mais dominantes, uso e costume do padrão de famílias ricas ou de renda média e alta da nação brasileira.

Dona Maria é natural de Vassouras, cidade localizada no centro-sul do estado do Rio de Janeiro, onde nasceu, há 87 anos, oriunda de uma família pobre e negra, integrada por dez irmãos. Ainda menina, com cerca de 12 anos, começou a trabalhar na fazenda do pai e avô de Yonne Mattos Maia e André Mattos Maia Neumann, seus atuais padrões —ou seriam proprietários?

Gravura de Debret sobre o dia a dia de um negro – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia

A Vassouras que conhecemos hoje está distante daquela da virada do século 19 para o 20, quando era tida como “a maior produtora de café do mundo” e celeiro de nobres, barões, viscondes, condessas e marqueses, os verdadeiros donos da localidade, cheia de ostentação, com palacetes suntuosos e grande número de pessoas escravizadas.

Os Mattos Maia, como se vê, têm origem escravagista, assim como dona Maria de Moura tem a sua nos horrores da escravidão. Sabem manipular a opinião pública, entocar pessoas em benefício próprio, escamotear as leis e cometer crimes, como racismo e cárcere privado. Seus antepassados, há mais de cem anos, trancafiavam negros acorrentados nas senzalas; hoje, seus herdeiros os amordaçam nos apartamentos. Em entrevista domingo ao Fantástico, disse Ana Luiza, sobrinha da vítima, lamentando a situação: “Eu sinto dor. Eu olho para ela e eu vejo uma escrava. Eu vejo escravidão”.

Dona Maria de Moura foi resgatada em março de 2022, após denúncia anônima, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Nunca um caso tão longevo tinha sido registrado pelo órgão. O procurador Thiago Gurjão, integrante da Núcleo Regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), que denunciou mãe e filho, acerta quando diz da correlação entre esse crime e “um meio de enriquecimento ilícito”.

Em sua defesa, os ex-patrões alegam que a vítima “era parte da família”, e o advogado dos denunciados, Marcos Vecchi, chegou a dizer em entrevista que os acusados estão sofrendo “racismo estrutural reverso”. Risível.

Atualmente com 87 anos, Dona Maria de Moura chegou à casa da família aos 12 anos e foi resgatada em março de 2022. Caso é o mais longevo já registrado, segundo promotora do MPT – Reprodução/Fantástico

Com a saúde debilitada, quase cega e com sintomas de demência, dona Maria de Moura perdeu a vida inteira em troca de maus-tratos e humilhação. A denúncia por parte do MPT é causa justa e urgente, mas está longe de reparar danos materiais correlatos.

Os números sobre a escravidão doméstica só crescem. Segundo o Código Penal, a definição de trabalho análogo à escravidão é o “caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto”.

Em seu excelente livro, “Racismo Brasileiro: uma História da Formação do País” (Todavia), a historiadora Ynaê Lopes dos Santos é assertiva no diagnóstico da escravidão brasileira quando diz que “a liberdade de pessoas negras não era a mesma usufruída pelas brancas”. Para ela, “a história do racismo no Brasil é, também, uma história de permanências”.

Faz-se urgente estancar na fonte tantas atrocidades e ofensas praticadas por “pessoas de bem” contra a população negra —de motoboys a escritores. Em 2023, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), houve um aumento de 61% nas denúncias de trabalho escravizado no país em relação ao ano anterior –de 2.119 para 3.422 casos.

Qualquer que seja o número, sempre haverá dor e sofrimento de uma parte e regozijo e benefício de outra. Essa ordem absurda precisa parar e já. Para isso, a Justiça precisa punir, sem atenuantes, os praticantes desses crimes hediondos.

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