Contra a fome, sem barganha

Partidos do Centrão integraram o governo que permitiu a deterioração dos indicadores de miséria e pobreza

Não é de hoje que Lula põe o enfrentamento à miséria no topo dos programas de governo que o levaram a três mandatos presidenciais. Nas gestões petistas anteriores, em decorrência de programas de erradicação da extrema pobreza, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU. Nos anos de Jair Bolsonaro no Planalto, o misto de indiferença e incompetência empurrou 33 milhões de brasileiros para a insegurança alimentar severa, conforme pesquisa da Rede Penssan em 2022. É o caminho de superação dessa tragédia que se pretende trilhar com o lançamento hoje, no Piauí, do Brasil Sem Fome. Contraditório é que ele se dê simultaneamente ao debate escancarado sobre a cisão do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) para saciar o apetite do Centrão pelo Orçamento público.

Pragmatismo é uma dimensão necessária do ambiente político brasileiro. Conciliação sempre foi atributo de Lula em mandatos presidenciais — ninguém se forja impunemente no mundo das negociações sindicais. Mas não é razoável que tudo isso se sobreponha à urgência na elaboração e implantação de política pública inteligente e focalizada, eficiente e ilibada de combate à miséria. O governo arregimentou 24 ministérios para a empreitada de retirar o Brasil do Mapa da Fome até 2030, em linha com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Ao mesmo tempo, acena com a fratura da pasta que dá o norte.

Fome é questão urgente — Foto: Domingos Peixoto/ O GLOBO

Não há sentido, tampouco nobreza, em cindir o MDS para deixar um naco da política social nas mãos de partidos que nunca primaram nem pela criatividade nem pela eficiência na área. Ficar com o Bolsa Familia e abrir mão do sistema de assistência social, do Cadastro Único, da relação com governos estaduais e municipais é tão arriscado quanto estúpido. Não se trata de excelência, mas de desintegração.

Partidos do Centrão, como PP, União Brasil e Republicanos, integraram o governo que permitiu a deterioração dos indicadores de miséria e pobreza. A gestão Bolsonaro torrou dez anos do antigo Bolsa Família em dois, sem melhorar os indicadores sociais. A fome dobrou entre famílias com crianças menores de 10 anos; alcançou 43% dos domicílios com renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo.

Ainda ontem, o IBGE apresentou a menor taxa de desemprego em nove anos, 7,9% no trimestre maio-julho. O mercado de trabalho melhora, a economia reage, a inflação caminha para a meta. Faz um par de meses que os alimentos, grupo de maior peso na cesta de consumo das famílias pobres, registram queda nos preços. Qualquer melhora na renda, seja por acesso a trabalho, seja por ganho no poder de compra, contribui com a segurança alimentar. Isso porque a fome no Brasil, país continental em que se plantando tudo dá, tem muito a ver com dinheiro.

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2022, e ficou nítido o impacto na produção e no escoamento de grãos para o mundo, a primeira providência da FAO, agência da ONU para alimentação, foi distribuir sementes de culturas de curta duração. Era um jeito de viabilizar produção para consumo próprio em famílias que enfrentariam escassez de alimentos. No Brasil, as pessoas deixam de comer, suprimem refeições ou cortam produtos quando faltam reais. É na área rural que a fome é maior.

Assim, afora políticas de transferência de renda, aumento real do salário mínimo e recuperação do mercado de trabalho, são essenciais as ações para incrementar a oferta e o acesso a alimentos. Nessa chave, se encaixam programas como hortas e cozinhas comunitárias, merenda escolar, distribuição de cestas básicas e refeições, restaurante popular, apoio à agricultura familiar, mesmo em áreas urbanas. Tudo isso está contido no programa a ser lançado pelo presidente e pelo ministro do Desenvolvimento Social e ex-governador do Piauí, Wellington Dias, com a meta de reduzir a menos de 2,5% o percentual da população que não consome a quantidade recomendável de calorias.

O governo promete zelar pela qualidade da alimentação, o que deve significar incentivo a um cardápio saudável, em detrimento dos ultraprocessados que ganharam espaço na mesa dos brasileiros por preço baixo ou marketing alto. O imposto seletivo na reforma tributária, proposta um tanto interditada na tramitação na Câmara dos Deputados, é bom caminho para sinalizar o que realmente importa. Na pesquisa da Rede Penssan, quase metade das famílias que reduziram a quantidade comprada de arroz, feijão, vegetais e frutas convive com insegurança alimentar moderada ou grave.

Brasil Sem Fome depende de prática e habilidade. A crise é grave demais para entrar no pacote de barganhas políticas.

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