Não aguentamos mais.
Era assim que eu queria começar a escrever essa coluna, para falar da mortandade da gente preta neste mês de agosto de 2023. Crianças foram mortas pelo braço armado do Estado, lideranças negras e quilombolas foram assassinadas, chacinas em periferias seguem sendo feitas como se o que estivesse em jogo não fossem a vida de seres humanos. Há uma cumplicidade histórica do Estado brasileiro (sobretudo na sua esfera estadual) em parte dessas ações. Isso, quando o próprio Estado não é o responsável direto pelas ações que geram uma letalidade absurda da população negra.
Mas será mesmo que não aguentamos mais?
Ficamos tristes, enraivecidos, desamparados… Conversamos sobre o assunto, fazemos posts indignados, e a vida segue, até que outro menino de pele marrom seja morto por ser um menino de pele marrom. E aí, começamos o ciclo novamente.
O horror é tamanho que não há descanso. E aqui, é preciso fazer uma retrospectiva deste agosto e lembrar de quem teve sua vida violentamente ceifada.
Mal havíamos nos recuperado da chacina que aconteceu no litoral sul de São Paulo e, dia 7 de agosto, Thiago Menezes Flausino, 13 anos, foi executado na Cidade de Deus, Zona Sul do Rio de Janeiro. Ficamos chocados, fotos de crianças chorando de desespero no velório de seu colega foram amplamente veiculadas nas redes sociais. Parecia que não aguentaríamos mais uma criança morta em decorrência de ações policiais. O presidente da República se solidarizou com o horror da morte de Thiago e cobrou responsabilidade do governo do estado (se implicando também na busca de soluções para esse problema)
Nem cinco dias se passaram e, na mesma “cidade maravilhosa”, outra criança negra foi morta. Eloáh Passos, de 5 anos, morreu dentro de casa durante uma ação policial no morro do Dendê. Não preciso dizer que o estardalhaço seria outro caso essa morte tivesse acontecido em Ipanema, Leblon ou Laranjeiras.
Na verdade, preciso sim.
Isso porque é uma grande mentira dizer que “não aguentamos mais ver a morte de pessoas negras”. No Brasil, nós aguentamos sim. E, às vezes, me parece que tem gente que ainda quer mais…
Não é de hoje que vivemos um genocídio negro no Brasil. Em 1978, Abdias do Nascimento publicou uma importante obra chamada Genocídio do Negro brasileiro, na qual demonstrava que a morte desenfreada na população negra não é obra do acaso, ou resultado de uma série de infelizes incidentes. Há intenção e intencionalidade nessas mortes. Há um plano, um projeto muito bem executado, que mantém a população negra sempre no limiar da vida e da morte. Um limiar que é atravessado pela classe social na qual os sujeitos negros se inserem, mas que está sempre ali, numa espécie de sombra constante que nos lembra todos os dias que nós, negros, somos facilmente matáveis.
As mortes de crianças negras obviamente nos chocam mais, mas elas também entram nas estatísticas brasileiras que foram recentemente publicadas pela rede de Observatórios de Segurança que apurou o número da letalidade negra nas ações policiais em seis estados do Brasil. Os números são alarmantes e parecem corroborar a existência de um padrão que, infelizmente, segue ordenando as ações vinculadas à segurança pública do país.
Mas o genocídio negro parece não ter limites. Nesse mesmo agosto de 2023, Mãe Bernardette Pacífico (isso mesmo, uma mãe de santo que carregava a paz no seu sobrenome) foi assassinada a tiros dentro de seu terreiro em Salvador. E essa foi uma daquelas crônicas de uma morte anunciada: não bastasse ter vivido a execução de seu filho (que como ela lutava pela comunidade quilombola que fazia parte), Dona Bernadete (uma importante mãe de Santo liderança quilombola) havia recentemente denunciado que estava sofrendo ameaças de morte. Uma denúncia que foi publicizada, mas que não foi capaz de mudar essa lei soberana que ainda ordena a vida negra brasileira: seguimos sendo matáveis.
O balanço do mês de agosto é que o genocídio negro brasileiro segue seu curso, se entranhando no nosso cotidiano, naquilo que consideramos “normal” ou “natural” numa sociedade que se diz democrática. Porque, por aqui, na nossa democracia, negro continua sendo alvo.
Até quando?
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.