Linda. Como você é linda!

Uns dois anos atrás um texto foi hit nas redes sociais, especialmente entre minhas amigas feministas: “Como conversar com meninas”, (no original: “How to Talk to Little Girls”).

Texto de Vanessa Rodrigues no Blogueiras Feministas

A partir de um relato pessoal, a autora propõe que revejamos a maneira como iniciamos nossas conversas com meninas, evitando as corriqueiras perguntas/comentários sobre a aparência física. Afinal, diz a autora, “ensinar as meninas que a aparência delas é a primeira coisa que se nota ensina a elas que o visual é mais importante do que qualquer outra coisa”.

Assim, ela diz que tem se acostumado a perguntar sobre livros ou assuntos gerais que passam longe de vestidos, sapatos ou batons.

Como todas as pessoas que compartilharam na época, li e acolhi esse artigo com entusiasmo. Achei um frescor. E passei mesmo a me policiar nos papos. Aliás, tenho que contar que simplesmente adoro conversar com meninas e elas costumam me adorar também. Temos química, sempre. <3

E aí eu estava num aniversário e, dividindo a mesa com dois casais de amigos, citei esse texto e comentei sobre como estava agindo a partir de sua leitura. Os dois casais são brancos, mas um deles tem uma filha negra, adotada ainda bebê.

E quando terminei de falar, minha amiga me respondeu, no ato:

“Não com a minha filha! Te peço, Vanessa, que continue, sim, elogiando a aparência da Manoela*. Elogie seu sorriso, elogie suas roupas e elogie, principalmente, seu cabelo. Porque ninguém o faz. Se num grupo de amigas ela é a única menina negra, ela é aquela que ninguém lembra de elogiar. Você é uma das poucas pessoas que sempre diz que ela é linda. Deixa que do resto eu cuido”.

Confesso que fiquei muda na hora. Não tive o que responder e me senti envergonhada. Acho que me senti mesmo foi insensível, encantada pela literatura, mas incapaz de trazer aquilo para as nuances da vida real, da vida que forja meninas inseguras em busca por aceitação o tempo todo, mas que também nos aponta as falsas simetrias, que diz que os contextos são diferentes e que, por isso, nos exigem reflexões e comportamentos distintos.

Da vida que diz que meninas que não têm o cabelo liso ou o nariz “afilado” não são belas default. Aliás, são quase invisíveis, na maioria das vezes só sendo vistas se for para criticar, pra constranger, pra diminuir.

Em grande medida, meninas como eu fui.

Foto de Anna Laura. Parte do projeto “Pérolas Negras” criado por Raissa Rosa, estudante de 23 anos que participa da Organização Não Governamental (ONG) Casa Cultural do Morro, em Viçosa (MG). O Projeto “Pérolas Negras” tem o objetivo de ensinar as meninas-moças do Rebenta Rabicho a cuidarem dos seus cabelos naturais como forma de valorização da identidade negra.

Claro que tem uma perspectiva totalmente metalinguística nisso. Porque é justamente o que o artigo aborda: do extremo destaque que damos à aparência de meninas e mulheres e do impacto disso em suas vidas. E, claro, a questão de fundo sempre será: mas, por que temos que ser bonitas? Quantos manifestos e artigos sobre o direito de sermos feias, de não sermos tratadas como enfeites do mundo ou como bibelôs já não escrevemos, divulgamos ou assinamos, convictas e ferozes?

Afinal, mesmo as campanhas do “Desafio Sem Make” ou de “Belezas Fora do Padrão” (como o de mulheres gordas, por exemplo) sempre trazem o apelo da aceitação pela aparência física, mesmo que seja por meio de uma pretensa proposta transgressora e de não obviedade.

Ao mesmo tempo, não consigo defender que elogiar a aparência de meninas negras seja um estímulo à futilidade ou tão somente a reiteração de um modelo que tanto queremos combater.

Meninas que sofrem pelo racismo estrutural, que constantemente veem seus cabelos, sua cor de pele, seu nariz, sua boca, seu sorriso observados de maneira negativa, que veem sua autoestima mutilada, roubada, combalida por causa de um padrão eurocêntrico de beleza, precisam ser lembradas o tempo todo que também são bonitas.

E, especialmente a partir desse episódio, em meu ativismo tenho me cobrado a necessidade de olhar o caso a caso mesmo. Adoro e aprendo muito com esses textos que me sacodem, me fazem pensar, me trazem propostas e me tiram da minha zona de conforto. Mas, realmente me esforço pra não perder minha conexão com a realidade, ao menos, aquela cotidiana, a que está ao meu alcance. Aquela que me lembra que elogio à aparência per se pode ser bastante empoderador e politicamente forte o suficiente para valer a pena iniciar uma conversa com uma menina de 11 anos.

*O nome foi modificado para preservar a identidade da menina.

 

Se você ainda não leu:

32 lições feministas para a minha filha

 


 

Autora

Vanessa Rodrigues é jornalista, co-fundadora da Casa de Lua e gostosa. Atualmente escreve no Brasil Post e pode ser encontrada também no Facebook e Twitter.

Foto de Anna Laura. Parte do projeto “Pérolas Negras” criado por Raissa Rosa, estudante de 23 anos que participa da Organização Não Governamental (ONG) Casa Cultural do Morro, em Viçosa (MG). O Projeto “Pérolas Negras” tem o objetivo de ensinar as meninas-moças do Rebenta Rabicho a cuidarem dos seus cabelos naturais como forma de valorização da identidade negra.

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