A agenda ambiental e o homem branco sem identidade

Imagem: Montagem com fotos de Paulo Pinto, Fernando Frazão e Joédson Alves/Agência Brasil

São apenas quatro meses de 2025, parece pouco mesmo, mas já vivemos muitos anos em um. O Brasil na sua imensa complexidade, dessas que gringo nenhum, nenhum mesmo, consegue compreender: como um país abriga tanta diversidade de gente, de natureza, de bioma, de bicho, de comunidade, além da diversidade imensa de desigualdades sociais? Minha nossa.

Há semanas tento escrever esse texto, e ele já passou por vários formatos, migrando do ódio ao descontentamento. Trabalho com a agenda ambiental desde minha infância, juro. Cresci com amigos pelo bairro já me engajando em agendas ambientais. Não é mérito de currículo, não fiz isso para ganhar broche de escoteira, até porque nunca fui uma, não fiz para sair em capa de revista como criança ativista, nunca fiz greve de fome ou pelo clima. O lance era sobreviver e manter o mínimo necessário para se viver no território. Ponto.

Desde então, trabalho com isso, vivo disso, tenho amigos fazendo isso, passo mais horas do que deveria pensando nisso. Vivo na agenda de clima, meio ambiente e afins há quase 37 anos, minha idade, entre os muitos espaços onde já trabalhei e morei neste país. E tudo isso sendo mulher. Isso é quem eu sou. E ser uma mulher mediando conselho gestor de mosaico de unidade de conservação, fazendo falas públicas de denúncia e indignação, ou qualquer outra coisa que tenha feito nos últimos anos, não me deu privilégios. Já fui ameaçada por vereador por telefone e mensagens, já fui ignorada  e já tive a fala cortada, inclusive por colegas de profissão.

Trabalho com a agenda racial no debate ambiental há alguns anos, pesquisando de forma independente e escrevendo, mas também atuando na incidência política a serviço do movimento negro e das organizações sociais em que trabalhei e trabalho. Acompanho a luta indígena, apesar de nunca ter trabalhado nela ou participado dela, tenho muitos amigos indígenas e não indígenas e vejo a treta toda que é a resistência.

E nos chamam de identitários.

Tudo isso martela na minha cabeça há semanas. Entre vontade de chorar, desistir, berrar, ultrapassar limites diplomáticos básicos de convivência. Um caos. Não é um desabafo pessoal ou profissional, mas talvez seja também.

Sou bastante feliz por me denominar socioambientalista. Essa palavra me define, essa palavra diz quem eu me tornei ao longo da minha vida. E, se eu tivesse entendido isso antes, eu poderia explicar o que eu faço para os meus padrinhos e o meu avô – eles nunca sacaram bem o que eu estava fazendo da vida e o porquê de tantas horas de reuniões e pouca grana. 

O movimento socioambiental brasileiro tem uma história importante que não pode ser desconsiderada por quem está chegando agora. Deve ser referência. Não podemos nos dizer socioambientalistas se usamos termos da extrema direita para atacar e diminuir lutas históricas de movimentos sociais.

Ora, se eu me denomino socioambientalista, eu sei sem pestanejar que a luta ambiental é indissociável da luta por direitos humanos.

A extrema direita americana costuma usar o termo “identitário” de forma pejorativa para atacar movimentos que lutam por justiça racial, de gênero ou por direitos LGBTQIA+. Para esses grupos, qualquer reivindicação baseada em identidade é vista como uma ameaça à “ordem” tradicional e aos privilégios historicamente consolidados por uma sociedade branca, patriarcal e heteronormativa. Eles tentam inverter o discurso, acusando os movimentos sociais de promover “divisões” e “vitimismo”, enquanto buscam legitimar suas próprias pautas autoritárias, racistas e xenofóbicas, como a defesa da “liberdade” e da “família”.

Essa retórica, comum também no Brasil, serve para deslegitimar lutas por equidade e esconder a violência estrutural que sustenta a colonização em muitas casas de brasileiros que se dizem “esclarecidos”. De forma curiosa (e nem um pouco inocente), tanto setores da extrema direita quanto vozes da própria esquerda brasileira têm recorrido a esse rótulo para acusar movimentos de estarem fragmentando a luta política. Mas o que está realmente em disputa quando se usa “identitário” como insulto? O que essa crítica esconde — e quem ela tenta calar?

Agora vem cá! Ser homem branco não é identidade?

Quando chamam de “identitária” a luta quilombola por acesso à terra, ou a mobilização de povos indígenas contra o garimpo ilegal, estão se recusando a ouvir a política que vem dos corpos, dos territórios, das experiências de vida concreta, e aprofundam a desigualdades. Estão dizendo que só existe luta legítima se ela couber dentro de um molde colonizador, branco e que desqualifica técnicas e conhecimentos — e foi assim que o Brasil foi formado e tomado pelas capitanias hereditárias.

Com muita tranquilidade, digo que, enquanto não falarmos sobre direitos humanos na agenda ambiental ou climática, chamar e mencionar as pessoas dentro da luta pelo que elas realmente são, infelizmente nossa conversa seguirá vazia de conhecimento e construção básica de luta. A luta sem debater a complexidade das pessoas e dos territórios é insignificante. Ela não agrega, ela divide.

Construir políticas públicas que funcionem no Brasil exige coragem para abandonar velhas hierarquias colonizadoras e compromisso com alianças baseadas em escuta, respeito e justiça racial e social. Porque, se a crítica ao identitarismo continuar sendo usada para deslegitimar quem luta por existir, o que estará em jogo não será apenas uma estratégia política — mas o futuro da própria democracia.

E por fim, para lembrarmos:

“A negação da plena humanidade do Outro, o seu enclausuramento em categorias que lhe são estranhas, a afirmação de sua incapacidade inata para o desenvolvimento e aperfeiçoamento humano, a destituição da sua capacidade de produzir cultura e civilização prestam-se a afirmar uma razão racializada, que hegemoniza e naturaliza a superioridade europeia.”

— Sueli Carneiro, Dispositivo de Racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser (Zahar, 2023)


Mariana Belmont é jornalista, pesquisadora e organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023) e atualmente é Assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra.

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