São Paulo completa 462 anos na próxima segunda-feira. A data não é apenas oportuna para refletirmos sobre seus desafios urbanísticos, mas também sobre as narrativas sobre a cidade, ou seja, sobre a maneira como São Paulo é representada nos mais diferentes discursos.
Por Raquel Rolnik Do Raquel Rolnik
Uma destas narrativas trata São Paulo como uma cidade bastante segregada, organizada – e dividida – a partir das desigualdades de renda. Uma cidade, portanto, em que bairros ou condomínios “de ricos” estão apartados de assentamentos “de pobres”. Durante muito tempo, o predomínio dessa maneira de entender a cidade nos impediu de olhar para a dimensão racial da segregação espacial.
A discussão racial sempre foi difícil de ser feita entre nós, já que o modelo de segregação baseado na cor é, por excelência, o das cidades norte-americanas, em que os enclaves étnicos são muito mais visíveis. É fácil identificarmos bairros habitados em sua grande maioria por negros, brancos, asiáticos ou hispânicos. O mesmo tipo de cisão profunda é sempre lembrado quando falamos das cidades da África do Sul e das marcas do apartheid. Em comparação com os Estados Unidos e a África do Sul, as cidades brasileiras – e São Paulo em especial – não parecem divididas por cor.
Entretanto, se olharmos para os mapas raciais do Brasil, desenvolvidos a partir dos dados do IBGE para o Censo de 2010, a coisa muda de figura. São dois mapas, um publicado pelo Pata Data e outro pelo Jornal Nexo, em que cada ponto no mapa representa uma pessoa e sua cor. Vale lembrar que o Censo utiliza o critério de autodeclaração: quem responde determina a raça, cor ou etnia a que considera pertencer, em um universo de seis possibilidades de escolha – branco, preto, amarelo, pardo, indígena ou nenhuma delas.
Os dados indicam que 47,7% dos brasileiros se declararam brancos, 7,6%, pretos, 43,1%, pardos, 1,1%, amarelos e 0,4%, indígenas. Se olharmos os dados só para a região metropolitana de São Paulo, os brancos sobem para 63,91% e os amarelos para 1,35%, enquanto que o número de pretos (5,52%), pardos (29,11%) e indígenas (0,1%) cai em comparação com o restante do país. Se sozinhos os números dizem pouco sobre segregação, os mapas permitem ler claramente que a cor é bastante relevante para pensar essa questão.
Em primeiro lugar, é possível ler que, na região metropolitana de São Paulo, quanto mais periférico for o bairro, maior a predominância de pardos e negros. Em outras palavras, o padrão de segregação por renda seria acompanhado pelo componente racial, já que pardos e negros têm, em média, renda menor do que a dos brancos. No entanto, a presença da população negra em São Paulo não segue apenas essa lógica. Os mapas mostram que a zona norte, com especial destaque para a Brasilândia, é um dos territórios negros da cidade, isto é, um dos lugares onde a cultura afro-brasileira é particularmente relevante e forte. Ou seja, discursos que afirmam não existir segregação racial em São Paulo tornam invisíveis matrizes étnico-culturais importantes para a cidade.
Também é possível visualizar uma espécie de “corredor amarelo”, ou seja, uma concentração da população de origem asiática – não só de japoneses, mas também chineses e coreanos que imigraram em períodos mais recentes – num eixo norte-sul que vai do Bom Retiro ao Jabaquara, passando por bairros já tradicionalmente asiáticos como a Liberdade. Mas, além dela, há concentrações de grupos sociais que se autodeclaram amarelos na Vila Carrão e em Cotia, na região
A partir desses dados, o Jornal Nexo elaborou um ranking das cidades mais segregadas do Brasil. Para estabelecer essa lista, o Jornal utilizou o índice de dissimilaridade, uma medida demográfica que compara a distribuição de grupos em pequenas áreas. Trata-se de um indicador que varia de 0 a 100: quanto maior o número, maior a concentração racial no espaço urbano. O resultado mostra que São Paulo é a terceira capital mais segregada em relação a raça e cor, seguida apenas de Porto Alegre e Vitória, no primeiro e segundo lugares, respectivamente. Na lista de todas as cidades brasileiras, Niterói, no Rio de Janeiro, é a mais segregada e São Paulo fica na décima posição geral.
Embora os números de dissimilaridade sejam muito inferiores aos de cidades norte-americanas – enquanto São Paulo marca 35,9 na escala, Chicago e Nova Iorque, por exemplo, pontuam 82,5 e 81,4, respectivamente –, é importante notar que a questão racial está presente na estruturação da cidade, o que o mito da mistura de raças e da democracia racial não nos permite ver.