Com o objetivo de adular a extrema direita e constranger o governo, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, facilitou a aprovação de regime de urgência para votação do infame PL 1904/24, que equipara a prática de aborto ao crime de homicídio, mesmo nos casos autorizados por lei, se realizado após 22 duas semanas de gestação.
Conferiu urgência também ao mal dissimulado PL 4372/16, que pretende impedir a homologação de acordos de delação premiada de réus presos.
A movimentação parlamentar causou perplexidade mesmo entre aqueles que não mais se deixam surpreender pela voracidade e soberba do centrão e da extrema direita na promoção de interesses mais mesquinhos e pautas obscurantistas, em detrimento do Brasil.
O PL 1904/24 nada tem a ver com a proteção da vida. Trata-se apenas de uma medida hipócrita, voltada a restringir, ainda mais, o direito e a autonomia das mulheres. Como sabemos, a legislação penal brasileira apenas autoriza o aborto nas hipóteses de risco de vida para a mãe, gravidez decorrente de estupro e feto anencéfalo.
A maior perversidade do PL 1904/24 foi estabelecer às mulheres vítimas de estupro que decidirem pela prática do aborto após 22 semanas uma pena maior do que aquela atribuída aos homens que as estupraram. Sabemos que as principais vítimas são meninas e adolescentes estupradas por parentes e pessoas próximas, que encontram enorme dificuldade em denunciar abusos e recorrer aos serviços de saúde para realizar o aborto.
Como as experiências recentes de Portugal e Uruguai demonstram, retirar o aborto da clandestinidade e promover políticas públicas de prevenção da gravidez constitui a melhor ferramenta para reduzir abortos e proteger a vida de milhares de mulheres.
Essas mesmas forças parlamentares, que não se acanharam covardemente em propor maior punição a mulheres vítimas de estupro que optam pelo aborto do que a homens que cometem estupros, também não tiveram nenhuma cerimônia em propor medida legislativa voltada a facilitar a vida das organizações criminosas. Ao decepar o instituto da delação premiada, fizeram a festa de narcotraficantes, milicianos e corruptos, assim como militantes de grupos radicais que atentam contra a democracia.
O PL 4372/16, proposto originalmente por parlamentares de esquerda, à época da Operação Lava Jato, foi adotado e turbinado pela atual direita parlamentar, preocupada com delações de golpistas e milicianos que eventualmente atinjam Bolsonaro, familiares e simpatizantes envolvidos em outros crimes, como o assassinato da vereadora Marielle Franco.
O abuso de prisões provisórias para obtenção de delações, que motivou originalmente o PL, não depõe contra esse instrumento indispensável ao combate ao crime organizado, senão contra os magistrados que abusaram de suas prerrogativas para a obtenção de delações.
Como bem explicou editorial desta Folha, o instituto da delação premiada funciona como um forte incentivo para que membros de organizações criminosas contribuam com as investigações em troca de benefícios penais. Daí a sua relevância no combate de uma criminalidade cada vez mais organizada.
Cumpre ao presidente Lira e seus liderados explicar por que tanta condescendência com o crime organizado e tanta violência contra meninas e mulheres, mesmo quando vítimas de estupro.
Há algo de errado com a direita parlamentar brasileira, que parece ter definitivamente perdido sua bússola moral.