acabo de inaugurar um pequeno negócio em uma das centenas de shoppings de Brasília, já patenteei a ideia porque vejo nela sinal de progresso e expansão de franquias.
Por Lêle Teles enviado para o Portal Geledés
chama-se Tenda de Cafunagem.
coisa simples, a tenda é um pálio de sedas brancas transparentes, com um belo tapete felpudo no chão, um divã de couro branco e um banquinho de madeira nobre.
o cliente, sempre estressado, tira os sapatos, deita-se com a cabeça levemente erguida e eu, com as unhas grandes, faço-lhe cafunés por 25 minutos.
em seguida, o cliente tem direito a me apresentar um assunto que lhe tem tirado o sono e a concentração.
faço as vezes de um oráculo que absorve os problemas alheios; a ideia é que o cliente saia da tenda leve e que não leve mais com ele aquele problema.
tenho conseguido 100% de satisfação da clientela.
efeito placebo, denunciam os invejosos. sim, digo, Jesus foi o maior vendedor de placebos da história, ele mesmo dizia aos que curava: “tua fé o curou”.
ou seja, Jesus avisava a seus pacientes que aquele remédio feito de saliva e barro não era o que curava a cegueira, o que curava o cego era sua vontade de ser curado.
tanto é que o Mestre nunca abriu uma farmácia.
charlatanismo, acusam outros. não é, não prometo cura, não uso unguentos e nem faço orações. apenas converso e esfrego minhas unhas no couro cabeludo das pessoas.
pois bem, ontem, após cafunar um jovem arquiteto de 29 anos, ele suspirou fundo, sentou-se e me inquiriu:
mestre cafuna – é assim que todos me chamam – os deputados acabam de aprovar um projeto que define a família como sendo a união entre um homem e uma mulher e, segundo estes deputados evangélicos, a família é um projeto de Deus, alegam basear-se na bíblia. é correto isso?
não, pequeno gafanhoto – respondi-lhe de forma calma e serena – não é correto, mas vamos por partes.
dei-lhe uma xícara de chá de flores silvestres, ajeitei na cabeça o meu turbante tuaregue que trouxe do Mali, sentei em lótus à sua frente e discorri:
gafanha, Deus nunca se uniu a mulher alguma, portanto, esse tipo de família que confiam a ele já é, em princípio, uma fraude.
você sabe, pequeno gafanhoto, Adão, o primeiro homem, era filho de pai solteiro.
e pior, um pai ausente e irresponsável.
à minha frente, bebericando o floral na xícara de barro, o jovem me olhava e seus olhos brilhavam em êxtase jovial.
atentai bem, filho do homem. Deus fez nascer Adão já adulto. e aí reside um grande problema, como diabos uma pessoa que nunca foi criança pode se tornar um homem?
Adão nunca mamou, nunca foi ninado, não limparam-lhe as fraudas, nunca lambeu o próprio catarro e nem levou merenda caseira para a escola.
e esse infeliz ainda pariu a própria esposa – que também não conheceu a infância – e com ela teve filhos homens.
mal criado, filho de pais órfãos que nunca haviam visto uma criança, o irmão matou o outro.
e para completar a desgraça, Deus expulsou o filho, a filha e os netos de casa, só porque abriram a geladeira a noite e comeram uma maçã escondidos.
velho sovina.
portanto, quando se for falar em família, é melhor deixar Deus fora disso, o cara é um péssimo exemplo.
então, esse lance de família composta por UM homem e UMA mulher, não encontra amparo no Black Book, o livro que os homens escreveram como ghost writers de Deus.
>ali, o casamento é uma bagunça.
já no livro do Gênesis (16) vemos o velho Abraão, casado, levar uma serva para dentro de sua tenda e fazer-lhe filho na frente da esposa; depois levou outra serva pro barraco, fornicaram e fizeram mais filhos, as duas mulheres olhando.
e o velho patriarca viveu assim, em grande safadezas até a morte.
Jacó também era chegado à poligamia. traçou as filhas de seu tio Labão, Raquel e Lia, e ainda engravidou suas empregadas; tudo no seio do lar, tendo Deus como conivente testemunha.
em verdade, quase todas as famílias apresentadas na Bíblia eram poligâmicas; Abias teve 14 mulheres, Davi teve várias mulheres e Salomão, o rei playboy, tinha nada menos que 300 esposas e setecentas concubinas.
fiz uma pausa, peguei um cachimbo de madeira e soprei nas narinas do jovem arquiteto um rapé feito de cinzas de folhas de plantas amazônicas, dei-lhe mais chá e prossegui:
no livro do Êxodos (21:10) pequeno gafanhoto, Deus – o próprio – confidencia a Moisés ser normal um homem que tenha uma esposa se juntar a outras.
como se vê, na bíblia não há amparo para este tipo de fuleiragem proposta por esses pastores afeminados.Jesus tinha dois pais, Deus e José, que era seu pai adotivo.
Lot, o patriarca de Sodoma e Gomorra, ofereceu as filhas virgens para uma turba que ameaçava comer, à força, os cus de uns anjos que caíram do céu.
como pode um pai oferecer a virgindade das próprias filhas para salvar as penas de uns querubins? é dessa família que falam os pastores?
meu filho, aqui no mundo real, metade das casas são tocadas por mães solteiras. o casamento é uma mentira, as esposas estão a ser espancadas e humilhadas por seus maridos, buquês voam das mãos das noivas sem que uma mão se levante para apanhá-los.
cada vez querendo menos filhos, os casais não copulam mais para procriação, transam por pura safadeza.
família, é preciso que alguém diga isso a estes energúmenos religiosos, é um núcleo social determinado pela cultura, relativizável portanto e variável no tempo e no espaço.
Bronislaw Malinowski, o seminal antropólogo funcionalista polaco, já havia destruído qualquer teoria de universalização do conceito de família ao analisar os trobriandeses matrilineares no pacífico ocidental.
o espírito do tempo hoje nos diz que família é um núcleo social marcado pela convivência afetiva, por normas claras de responsabilidades, construção de patrimônio conjunto e transferência de herança; podendo ser formado por uma homem e uma mulher, dois homens e uma mulher, um homem e outro homem, uma mulher e outra mulher, apenas um homem e seu filho, ou uma mulher e seus filhos, vários homens e várias mulheres…
enfim, família é uma unidade social composta por mais de um indivíduo, tendo o amor e a responsabilidade como amálgama.
o resto é mercadoria.
disse isso, recolhi o pagamento das mãos do jovem e deitei-me como um faquir em minha cama de pregos, à espera do próximo cliente.
palavra da salvação.
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