Quem seria o “criminoso habitual”? O conceito de Moro é vago e estudos mostram como gênero, raça e classe influenciam os parâmetros da polícia e da justiça
Por Silvia Virginia S. Souza, Maria Clara D’Ávila e Carolina Toledo Diniz, do Justificando
A eugenia, ao longo da história, buscou justificar o injustificável e, no Brasil e em diversas partes do mundo, serviu para sustentar as atrocidades perpetradas contra milhões de negras e negros através da escravização dessas populações pelos colonizadores. Baseada simplesmente na ideia de que pessoas negras eram naturalmente inferiores em todos os aspectos da condição humana, essa é, sem dúvidas, a maior vergonha para a história da humanidade.
Vale destacar que o mesmo STF reconheceu o estado de coisa inconstitucional do sistema penitenciário do país, determinando algumas medidas de desencarceramento – como a implantação de audiências de custódia.
O Brasil já foi alvo de recomendações por diversos organismos internacionais para reduzir sua população carcerária, assumindo compromisso oficial, em 2017, de reduzir o número de pessoas presas em 10% até 2019 – atualmente há um défict de 358 mil vagas, ou seja, beira 100%. O PL n. 882/2019 segue na contramão desses compromissos.
Embora as consequências de uma “conduta criminosa habitual” estejam bastante precisas no projeto – a prisão -, a definição do que efetivamente configura a habitualidade não está.
O conceito de atividade criminosa habitual é vago e não se confunde com “reincidência” e “maus antecedentes”, termos já encontrados em nossa legislação. A reincidência ocorre com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória – quando esgotadas todas as possibilidades recursais -, até cinco anos após o cumprimento de pena. Após esse período, condenações anteriores são consideradas maus antecedentes. A legislação determina que ambas devem ser consideradas no cálculo da quantidade de pena a que uma pessoa acusada será submetida ao final do seu processo.
Na proposta de alteração legislativa do Ministro Sérgio Moro, não há um procedimento específico para apurar as tais “condutas criminosas” não objetos do processo-crime em andamento. Inexiste, portanto, oportunidade efetiva de defesa e tão pouco produção de provas efetivas sobre essa habitualidade, reiteração ou profissão criminosa. No caso da reincidência e maus antecedentes, o conceito é objetivo, exige-se um processo com condenação transitada em julgado.
Ainda que seja comum juízes e juízas considerarem quaisquer outras circunstâncias, tais como internação no sistema socioeducativo, sursis, inquéritos penais em andamento ou a simples passagem por audiências de custódia como pretexto para impor medidas mais gravosas, tais práticas são hoje ilegais, justamente por serem circunstanciais e são combatidas na jurisprudência (como pela Súmula 444 do STJ). Caso seja de fato incorporado no ordenamento jurídico as propostas legislativas de criação da figura do criminoso habitual ou profissional, isso se tornará a regra.
Se, por um lado, a proposta do Ministro Sérgio Moro restringe a autonomia de juízes para, analisando o caso concreto, definir pela necessidade ou não da prisão preventiva ou individualizar o regime de cumprimento de pena, por outro, ela amplia a possibilidade de os magistrados definirem de forma totalmente discricionária e circunstancial se uma pessoa será considerada uma criminosa habitual ou não.
Mas, afinal, quem seriam os ‘criminosos habituais’?
Um estudo recente produzido pelo ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) demonstra como questões de gênero, raça e classe influenciam significativamente os parâmetros decisórios de atores da justiça criminal. O relatório analisa a primeira atuação do poder judiciário após a prisão em flagrante, que é o momento das audiências de custódia, evidenciando que a seletividade penal se faz não somente na abordagem policial, mas também durante o processamento judicial, criando-se um novo filtro de seletividade a partir dos discursos de atores do poder judiciário.
Pesquisas anteriores também já revelavam o mesmo: segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça 65,2% das pessoas que passam por audiências de custódia são negras e, pessoas negras têm no geral, ao menos 12% mais chances de ter a prisão em flagrante convertida em preventiva do que pessoas brancas. Segundo dados de pesquisa realizada pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa, esse percentual varia de estado a estado. Em Minas Gerais, por exemplo, chega a 34% e no Rio de Janeiro, 22%.
Os casos acompanhados na recente pesquisa do ITTC, por sua vez, apontam que quando combinado o recorte de gênero, as diferenças são ainda mais expressivas: mulheres negras, além de serem alvos preferenciais de prisões em flagrante, uma vez que correspondem a 56,81% do total de mulheres abordadas pela polícia, tem as taxas de conversão de prisões em flagrantes em preventivas muito superior às de mulheres brancas: do total de mulheres brancas, 35,6% tiveram a prisão preventiva decretada, versus 40,5% da totalidade de mulheres negras. Esses dados indicam a possibilidade de que a seletividade penal racializada se mantenha operante nas decisões em audiência de custódia, em que pese seja mais evidente na atuação policial.
Ainda, percebe-se que o tipo penal de tráfico de drogas, que leva aos maiores índices de encarceramento – provisório ou definitivo – entre mulheres, é o que também apresenta maior diferença quando se cruza os dados de cor/raça com as prisões em flagrante: 59,21% das mulheres acusadas de tráfico são negras, ao passo que 40,79% são brancas. Quando analisadas as prisões preventivas decretadas em razão desse crime, temos que 56,6% das mulheres são negras, enquanto 43,4% são brancas, o que indica também uma maior seletividade racial na atuação policial do que no Poder Judiciário em relação ao tráfico de drogas.oltando aos dias atuais, é possível observar com bastante perspicácia como alguns dos atores da atualidade se inspiram nesses conceitos racistas do passado para tentar reintroduzi-los em nosso ordenamento jurídico, como é o caso da figura do “criminoso habitual”, presente no Projeto de Lei n. 882/2019, uma das propostas do Pacote “Anticrime” apresentada em fevereiro pelo Ministro Sérgio Moro.
Elaborado sem qualquer debate e estudo de impacto social, o projeto altera leis penais e processuais penais e pesa o pé com força na marcha-ré do Estado Democrático de Direito em diversos pontos, especialmente ao retomar o debate jurídico do direito penal do autor e propor medidas para dificultar a soltura, endurecer o cumprimento de pena e aprimorar as investigações daqueles que demonstram “conduta criminosa habitual reiterada ou profissional”.
Sem definir o que seria e quais os subsídios que levariam a essa classificação, o projeto veda a liberdade provisória sempre que o juiz, ao analisar o auto de prisão em flagrante, verificar que a pessoa está envolvida “na prática habitual, reiterada ou profissional de infrações penais”. Isto é, determina a obrigatoriedade da prisão provisória de forma abstrata, independente do crime e de suas circunstâncias.
O STF (Supremo Tribunal Federal), em 2012 e em 2017 julgou inconstitucional dispositivo da Lei de Drogas que vedava abstratamente a liberdade provisória para casos de tráfico, reafirmando a prisão provisória como exceção, devendo ser justificada caso a caso. Atualmente, 40% da população carcerária no Brasil já é composta por pessoas ainda não condenadas – presas provisoriamente – índice ainda maior entre mulheres, que chega a 45%, segundo dados oficiais do DEPEN, 2016. Caso aprovada, a proposta de vedação de liberdade provisória tem o potencial de ampliar exponencialmente esse número.
Outra proposta, igualmente inconstitucional, refere-se às regras de cumprimento de pena. A depender do crime pelo qual houve condenação, o Código Penal estabelece tipos diferentes de regimes de cumprimento – aberto, fechado ou semiaberto – que devem ser aplicados proporcionalmente à pena prevista. A alteração pretendida ao artigo 33 do Código Penal impõe a obrigatoriedade do regime inicial fechado nos casos em que houver “elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional”. O STF também já considerou inconstitucional esse tipo de previsão genérica por ofender a garantia constitucional de individualização da pena.
Vale destacar ainda que, segundo o Pesquisa, 75,11% das mulheres presas e flagrante são acusadas da prática dos crimes de furto e de tráfico de drogas, ou seja, há prevalência clara de crimes praticados sem violência e, na maioria das vezes, com intuito de obtenção de alguma vantagem econômica – na mais das vezes a subsistência, em razão da condição de vulnerabilidade social a que estão submetidas. No caso do furto – embora muitas vezes, se refiram a casos atípicos, ditos de bagatela -, a pesquisa demonstra que ainda prepondera decisões concedendo liberdade provisória.
Essa íntima relação entre os tipos de crimes característicos de prisões em flagrante, territórios alvos preferenciais de ação policial e perfil racial se evidencia na acusação de mulheres, em sua maioria negras. Esse filtro na atuação policial constrói um ideário de “suspeição” sobre “criminalidade feminina” que é, por sua vez, atualizada na atuação do poder judiciário.
Como afirma a advogada e ativista Dina Alves, isso se dá porque determinados grupos raciais são mais vulneráveis à punição estatal, em especial no que diz respeito à ação policial. Mulheres negras já enfrentam condições históricas de desigualdade produzidas pelo Estado, mas na administração da justiça, especialmente, é que essa disparidade se manifesta de forma explícita na produção de indivíduos puníveis a partir da intersecção de eixos de vulnerabilidade como raça, classe e gênero.
Os atores incumbidos da função de interpretação e aplicação da lei, sejam eles policiais, promotores, juízes, advogados, legisladores e demais servidores públicos do sistema de justiça criminal, dotados de autoridade pública, ao mesmo tempo reproduzem e produzem essas desigualdades na perpetuação de um padrão de criminalização de populações historicamente destituídas do acesso a direitos. E serão estes atores que novamente interpretarão e decidirão quem se enquadra na figura do “criminoso habitual”.
O ideário racista, sexista e classista adentra, portanto, ao critério subjetivo de interpretação do “criminoso habitual” pretendido pelo Ministro Moro. Não sem intenção: há décadas a população negra aponta o projeto genocida do Estado que opera através do sistema de justiça criminal. Essa margem de arbítrio, na prática, oportunizará, portanto, ainda mais, aos juízes deste país a continuidade dessa cultura nociva e seletiva de encarceramento em massa da população negra.
Importante notar que o texto apresentado ao Congresso Nacional pelo Ministro Moro apresenta como primeira justificativa a idéia de que “este projeto tem por meta estabelecer medidas contra a corrupção”, além de pretender se colocar como solução às questões de segurança pública. No entanto, preso em sua bolha lava-jatista, esqueceu-se o Sr. Ministro de considerar dados estatísticos e pesquisas científicas importantes no que tange às questões de raça, classe e gênero quando se trata de leis que prometem incrementar o sistema prisional.
Além de apresentar um projeto de lei que sequer acompanha um estudo de impacto social e econômico com os recortes de raça, classe e gênero, o Ministro Sérgio Moro, para resgatar a figura do criminoso habitual, se calca no conceito do determinismo um critério racista criando por Enrico Ferraro e já superado há décadas pela criminologia por culminar na manutenção do racismo e sexismo que há tempos vivem nas entranhas do judiciário brasileiro.
Silvia Virginia S. Souza é pós-graduanda em Direitos Humanos, Diversidade e Violência pela Universidade Federal do ABC, advogada e assessora de advocacy da Conectas Direitos Humanos, organização membro da Rede Justiça Criminal.
Maria Clara D’Ávila é mestranda em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo, advogada e pesquisadora do programa Justiça Sem Muros do ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, organização membro da Rede Justiça Criminal.
Carolina Toledo Diniz é advogada e mestre em Gestão e Políticas Públicas pela Faculdade Getúlio Vargas e consultora do programa Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, organização membro da Rede Justiça Criminal.