Pacote Moro e decreto de armamento são licenças para matar negras e negros

Queremos a garantia de ir e vir sem o risco de tomar 80 tiros. Queremos parlamentares negras atuando em seus mandatos e não executadas com tiros no rosto. Queremos nossa juventude nas escolas, universidades, em bons empregos, não nas cadeias e nos cemitérios. Queremos nosso povo quilombola com o direito à vida e à terra. Queremos segurança. E por isso fomos a Brasília nos últimos 11 e 12 de junho: barrar o projeto genocida de Sergio Moro, falsamente chamado de “anticrime”, e derrubar o decreto de porte de armas de Bolsonaro.

Por Bianca Santana e Selma Dealdina, no Yahoo

Movimento negro em protesto em Brasília (Foto: Matheus Alves / Alma Preta)

Sessenta entidades, encarnadas em 45 corpos negros e sua diversidade de cores, cabelos e turbantes, entregaram um documento ao Congresso Nacional e à sociedade brasileira. Nele, exigimos uma política nacional pautada pela sociedade civil organizada e fundamentada na inteligência e inovação dos órgãos de segurança pública — com melhoria na eficiência, eficácia e efetividade, não com aumento da força bruta.

Para resolver, de fato, o grave problema de segurança pública do país, é necessário elaborar diagnósticos qualificados e incorporar mais fontes de informação. É preciso ir além das ocorrências criminais para compreender o cenário violento em que vivemos. Quem mais mata? Onde? Por que motivos? E se formos pensar em roubos e assaltos: em que ruas e regiões acontecem? Em que horários e situações? Como é a iluminação pública do local? Perguntas que permitem respostas objetivas — muitas vezes já conhecidas por todo mundo — mas que sejam, de fato, utilizadas para a prevenção de crimes.

A proposta de Sergio Moro não menciona prevenção. Sem base em qualquer estudo ou dado, propõe prender mais e matar mais. Ou seja, o Ministro da Justiça apresenta um projeto que vai na contramão das evidências científicas, das recomendações e acordos internacionais.

Em 2017, morreram 65.602 pessoas no Brasil, 47.510 delas por tiros, um aumento de 6,8% em um ano. O número de pessoas presas também tem crescido enormemente, com quase 800 mil pessoas presas, o que torna o Brasil a terceira maior população carcerária do mundo. E a segurança pública não tem aumentado. Pelo contrário. Prender e matar têm nos deixado mais vulneráveis a criminosos, às facções, às milícias e também à ação de militares que atiram em inocentes, antes de fazer qualquer pergunta.

Na prática, de acordo com a proposta de Moro, qualquer policial que atirar para matar poderia alegar risco iminente ou impacto de forte emoção para não sofrer punição alguma. Legalizar aquilo que Bolsonaro e governadores como Dória e Witzel tem recomendado: atirar para matar. Mesmo que o alvo seja um trabalhador, acompanhando de sua família, a caminho de um chá de bebê. Mesmo que seja uma mulher quilombola, preservando o território recebido de seus ancestrais. No campo, 80% dos crimes praticados contra lideranças quilombolas são cometidos por arma de fogo. Negras e negros são alvos no Brasil. E a proposta de Moro, assim como o decreto de porte de arma de Bolsonaro, vai ampliar nossas mortes nas zonas rurais e urbanas.

Em Brasília, tivemos uma agenda intensa para denunciar a lógica racista que orienta tais propostas. Reuniões com deputadas, deputados, senadoras e senadores de diversos partidos: DEM, PCdoB, PDT, PP, PRB, PSDB, Psol, PT, Rede. É urgente o compromisso de todas as pessoas, parlamentares e partidos em barrar proposições que possam ampliar o genocídio do povo negro.

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), se comprometeu a não aprovar o pacote Moro rapidamente, como gostaria o governo, e a realizar amplo debate do projeto no Senado, com participação de negras e negros. Na sala da presidência da casa, acompanhado do deputado Orlando Silva – PcdoB/SP, e dos senadores Paulo Rocha (PT-PA) e Randolfe Rodrigues – REDE (Líder), Alcolumbre se afirmou solidário às reivindicações do movimento negro e se colocou à disposição para articulações futuras.

No segundo dia de nossa atuação em Brasília, acompanhamos a votação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, do projeto de lei proposto por Randolfe, que derruba o decreto de posse de armas de Bolsonaro. Quinze votos, contra nove, e a derrota do decreto foi aprovada na CCJ.

Primeira vitória, das muitas que testemunharemos em nossa coalizão. Estamos articuladas e articulados, em nosso próprio nome, para interromper as execuções e o genocídio de nosso povo, eliminar os padrões de desigualdade, discriminação e violência a que estamos submetidos, e exigir garantia e ampliação de nossos direitos. Logo estaremos de volta à nossa casa, à Casa do Povo, pela vida e por direitos.

Bianca Santana é jornalista e tem apoiado a incidência  de entidades do movimento negro no Congresso pela Uneafro-Brasil

Selma Dealdina é assistente social e integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ

 

 

Leia Também:

Entidades do movimento negro defendem rejeição do pacote anticrime do governo

Pacote Anticrime de Moro pode legalizar execuções policiais, alerta advogada

Presidente do Senado firma compromisso com o movimento negro contra o pacote de Sérgio Moro

75% das vítimas de homicídio no País são negras, aponta pesquisa

+ sobre o tema

Conceição Evaristo, a intelectual do ano

Quando Conceição Evaristo me vem à memória fico feliz,...

10 Filmes para conhecer o Cinema Africano

O cinema autêntico africano é bastante tardio quando tomamos...

Aborto é legalizado em 77 países mediante apenas solicitação; confira quais

A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, marcou para...

Reação de IZA ao saber de indicação ao Grammy Latino viraliza na web

Após ser indicada ao Grammy Latino 2023 na categoria Melhor Interpretação Urbana...

para lembrar

No mês da Consciência Negra, performance homenageia Abdias Nascimento

Poucos nomes são tão representativos para a história afro-brasileira...

Distrito Federal é território negro, aponta Mapa das Desigualdades

O Distrito Federal é um território negro, com 57,4%...
spot_imgspot_img

‘Dicionário das Relações Étnico-Raciais Contemporâneas’ convida ao aprendizado

A dimensão étnico-racial vem ocupando lugar essencial para a análise social, política, econômica e cultural do Brasil e se tornou um dos temas mais...

O genocídio nosso, de todo dia

Não aguentamos mais.  Era assim que eu queria começar a escrever essa coluna, para falar da mortandade da gente preta neste mês de agosto de...

Ambiente escolar é onde mais se sofre racismo, diz pesquisa

Uma pesquisa conduzida pelo Instituto de Referência Negra Peregum (Ipec) e Projeto SETA mostra que 38% dos entrevistados disseram que escolas, faculdades e universidades...
-+=