O preço do sucesso para os negros

O episódio lamentável do esdrúxulo caso de racismo cometido contra Maria Julia Coutinho – a Maju – deve ser visto em sua exata dimensão. O destaque de negras e negros incomodam. A comunicadora Maria Julia tornou-se uma febre televisiva. Conquistou um estupendo sucesso numa área cinzenta dos noticiários – com o perdão do sentido duplo da palavra – em que a mesmice é a marca, que é a da informação do tempo. A criatividade, carisma e beleza de Maju fizeram com que O Jornal Nacional – principal programa da Rede Globo – passasse a ter como atração a comunicadora que fala da previsão do tempo!

Por  do Brasil de Carne e Osso 

Para quem conhece Maria Júlia desde a adolescência como eu o seu sucesso seria questão de tempo. Este ataque poderia ser letal caso ela não fosse filha de quem é. Seus pais, amigos meus de longa data, são educadores e ativistas. São daqueles ativistas sóbrios e firmes em suas posições, mas proativos e muito focados na educação, como professores que são. Portanto, ela soube desde sempre, com os pais que tem, dos meandros do racismo brasileiro. Vai tirar de letra essa estupidez, pois tem autoestima positiva e pleno conhecimento da causa dos ataques sofridos: seu sucesso espetacular! Menos mal. Sua carreira que é sucesso desde a TV Cultura vai continuar em ascensão.

Comentaram comigo a respeito dos ataques e, confesso a vocês, não me dei ao trabalho de lê-los. Me horrorizam as frustrações de pessoas adoecidas. Não se trata de fuga, mas sim de um tipo de compreensão que há muito tempo tenho sobre o funcionamento da discriminação racial aqui em nosso injusto país.

Portanto, estou tranquilo quanto à Maria Julia – filha de um casal de amigos queridos. Entretanto, vou aproveitar para analisar este episódio – que não é um fato isolado – em “sua exata dimensão”.

De início, gostaria de fazer uma advertência aos meus leitores: esse tipo de agressão contra negros de sucesso deverá aumentar. Em meados dos anos 1990, quando coordenava um Grupo de Trabalho encarregado de colocar na agenda pública as políticas afirmativas para negros, dentre os diversos debates sobre os impactos estratégicos positivos que o Brasil teria com aquelas políticas – fato hoje comprovado por diversos estudos –, especulávamos sobre o fato de que ainda teríamos no futuro uma onda de racismo explícito. Sim; porque racismo à brasileira sempre se teve: todos negam serem racistas e todos conhecem diversas pessoas racistas! Uma verdadeira “obra prima” da hipocrisia nacional. Aquela especulação se convalida a cada vez mais.

Todavia, o que especulamos há cerca de 18 anos atrás naquele Grupo de Trabalho precursor foi sobre os efeitos das políticas afirmativas num país racista, em virtude da emergência de negros em destaque: diretores de grandes corporações, juízes, políticos, profissionais liberais, reitores, cientistas e profissionais do mundo da comunicação, dentre outros.

Vivemos num país em que a filha de um governador negro foi agredida e empurrada por um casal para fora do elevador social de um prédio de luxo. O fato se deu em Vitória, capital do Espírito Santo, em 1993. Para os agressores “uma empregadinha” não podia estar ali. Aliás, a ideia de elevador social e de serviço é um escândalo “apartheista” que resiste bravamente aqui em pleno século 21.

A ex-governadora e ex-favelada, hoje deputada federal, Benedita da Silva, pagou o seu preço (muito caro) quando governou o Rio de Janeiro. Celso Pitta, quando prefeito da maior cidade da América do Sul, foi tratado por entrevistadores de TV como marginal fosse. Joaquim Barbosa, que nunca foi conservador, pelo contrário, ao ser considerado como o brasileiro mais influente, apontado como provável presidente da república, pediu aposentadoria, quando dispunha de um bom tempo para se manter no STF – local onde todo jurista sonha estar e permanecer… Quando presidente da Suprema Corte sofreu agressões explícitas; inclusive em solenidades públicas, como na Câmara dos Deputados.

Negros e negras que se destacam, em qualquer contexto, correm riscos no Brasil. Nossos erros e eventuais falhas contam contra nós negros – sim. Mas contam menos do que o nosso sucesso. Este último costuma ocasionar mais danos para nós do que os primeiros. Por isso, os ataques à nossa Maju não representaram para mim algo inusitado. Lamentável – sempre –; mas previsível para quem se dedica a decifrar o “brasil de carne e osso”.

Não sou uma Cassandra que crê que tudo vai piorar sempre. Acredito num futuro em que medidas como as previstas pela Lei 10639/2003 possam fazer com que a diversidade étnico-racial brasileira seja utilizada como um trunfo; um valor estratégico invejado por outras nações.

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