A atriz Samara Felippo chegou por volta das 10h desta terça-feira (30) na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, no Centro de São Paulo.
Ela prestou depoimento sobre o caso de racismo contra sua filha de 14 anos, que ocorreu na semana passada, dentro da escola de alto padrão Vera Cruz, na Zona Oeste da capital paulista.
O episódio foi narrado pela atriz ao g1 neste sábado (27), quando Felippo contou que a menina negra de 14 anos teve o caderno rasgado e rasurado com frases racistas escritas pelas adolescentes punidas.
Na saída da delegacia, Samara contou que a filha quer permanecer na escola e está sendo acolhida pelos amigos.
“Ela está bem, ela quer ficar na escola, está se sentindo acolhida, os amigos estão do lado dela”.
A atriz também relatou que foi procurada apenas por uma das famílias das duas meninas agressoras.
“Eu tive um pedido de desculpas de um lado só. Vão retirar uma das meninas, é o que eu tenho certeza. A outra eu não tenho certeza se vai sair ou não, mas acredito que sim.”
“Até porque, ao mesmo momento que minha filha está sendo acolhida por essas colegas, talvez essas meninas voltem para escola agora, do tamanho do que aconteceu e sob a consciência que as crianças estão tendo já, elas vão ser hostilizadas.”
Problema recorrente
Segundo Samara, o caso não reflete uma situação isolada. A estudante já tinha sofrido racismo em outras situações no ambiente escolar.
“É reincidente, é recorrente. Desde o ano passado, de um episódio que um carregador some e a acusada é minha filha. Isso tudo são pequenas camadas do racismo que crianças pretas passam todos os dias veladamente.”
Samara afirma que recentemente as situações começaram a ficar mais explicitas, e que a filha não queria enxergar e até tentava minimizar para evitar problemas.
“E aí se materializou, porque realmente se materializou em uma escrita na cara dela.”
Mudanças
A artista também disse que está abalada com a dimensão do caso, mas com esperanças de que possa realmente alterar a estrutura das escolas, e da sociedade como um todo.
“Eu estou muito assustada com a repercussão disso tudo, e ao mesmo tempo muito feliz. Porque se tivesse uma mãe preta indo denunciar isso na escola, não estaria fazendo esse barulho como está sendo feito. Ela teria que lutar dez vezes mais para ser ouvida.”
Samara afirma que sua filha tem apenas uma professora preta, de um conjunto de dez docentes. E que o número de adolescentes pretos na turma também ainda é muito pequeno.
“É questão mesmo de ensinar. Tem crianças na escola que não sabe nem qual é a punição (em caso de crime de racismo). (…) Isso não pode mais acontecer. A reflexão que fica é: que tipo de politica de qualidade antirracistas precisam ser aplicadas? Não só a lei que tem que ser aplicada, do ensino afro-brasileiro, mas um corpo docente de professores pretos. Essas coisas precisam ser mudadas. Letrar funcionário, treinar. Programa de bolsas maiores e mais efetivos”.
Pedido de expulsão
A escola suspendeu por tempo indeterminado as duas alunas acusadas de ato de racismo. (Veja a íntegra da nota abaixo).
O Vera Cruz é uma das escolas mais tradicionais e caras da capital paulista. A mensalidade custa cerca de R$ 4.928,00 por mês para alunos do 9° ano e R$ 5.344,00 para estudantes do ensino médio.
O colégio tem um intenso trabalho de educação antirracista e apresentou o projeto inclusive na sede da Organizações das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça, durante a 3ª Sessão do Fórum de Pessoas Afrodescendentes.
“Construir uma escola e uma pedagogia antirracistas são desafios assumidos por toda a nossa comunidade escolar, com senso de urgência e responsabilidade social. Nosso Projeto para as Relações Étnico-Raciais é uma iniciativa ambiciosa que permite a oferta de bolsas de estudo para alunos pretos, pardos e indígenas na Escola Vera Cruz”, declara a escola nas redes sociais.
Em nota enviada ao g1, a Escola Vera Cruz informou que “os agressores foram informados das sanções definidas inicialmente, dentre elas, uma suspensão por tempo indeterminado, e proibição da participação no Estudo do Meio na Serra da Canastra. Novas sanções poderão ser adotadas, conforme apuração e reflexão sobre os fatos” (leia nota na íntegra abaixo).
“Pedi expulsão das alunas acusadas pois não vejo outra alternativa para um crime previsto em lei e que a escola insiste relativizar. Fora segurança e saúde mental da minha filha e de outros alunos negros e atípicos se elas continuarem frequentando escola. Não é um caso isolado, que isso fique claro”, disse ela ao g1 no final de semana.
“Eu sinceramente quero que as pessoas envolvidas – as agressoras, né, que são meninas de 15 anos, idade da minha filha – se reabilitem mesmo. Quero o bem delas, eu não quero mal de ninguém. Eu só quero que não convivam no mesmo espaço, onde poderão futuramente humilhar novamente e ofender e cometer outros atos de racismo contra ela [filha]”, declarou a atriz.
O g1 questionou a escola sobre o pedido de expulsão, mas não obteve retorno até a publicação dessa reportagem.
O que diz a Escola Vera Cruz
“No início desta semana, tomamos conhecimento de uma grave agressão racista entre alunos do 9º ano. Um caderno de uma aluna negra foi roubado, teve folhas arrancadas, uma ofensa de cunho racial altamente ofensiva foi escrita numa das páginas. Desde o primeiro momento, reconhecemos a gravidade deste ato violento de racismo, nomeando-o como tal, e imediatamente foram realizadas ações de acolhimento ao aluno agredido e sua família. Desde então, viemos trabalhando cuidadosamente sobre esse caso e nos comunicando muito intensamente com as famílias de todos os alunos envolvidos.
No dia seguinte, os agressores se identificaram e se apresentaram à Escola, com suas famílias, e diversas medidas foram tomadas, sempre no sentido de acolher o aluno vítima da agressão e sua família, bem como no sentido de garantir que os alunos agressores entendessem a dimensão de seu ato. Depois de amplo e intenso processo de apuração, foi possível promover um encontro entre os três alunos envolvidos, com mediação da escola.
Em seguida, os agressores foram informados das sanções definidas inicialmente, dentre elas, uma suspensão por tempo indeterminado, e proibição da participação no Estudo do Meio na Serra da Canastra. Novas sanções poderão ser adotadas, conforme apuração e reflexão sobre os fatos. É importante sublinhar que as alunas não reincidiram em agressões racistas; a Escola não tem conhecimento de qualquer outra atitude racista de ambas as alunas.
As ações punitivas foram determinadas conforme regras e procedimentos institucionais, que levam em consideração os sentidos das punições no ambiente escolar. As sanções foram definidas pelas equipes da Escola, considerando a gravidade das ofensas. Ações de reparação ainda serão definidas.
Em 2019, a Escola Vera Cruz iniciou um Projeto para as Relações Étnico-Raciais, com ações no ambiente escolar de enfrentamento ao racismo estrutural: olhar sobre o currículo escolar, formação continuada, ampliação da diversidade racial entre alunos, professores e gestores, dentre outras. Ficou evidente a importância da ampliação do letramento racial, do não silenciamento de manifestações racistas, do pronto e amplo amparo às vítimas de eventuais agressões racistas e do encaminhamento adequado de ações de sanção e reparação nestes casos. Entendemos que um projeto de educação para as relações raciais é um projeto de transformação dos alunos. Sua construção se dá pelo enfrentamento direto e pelas ações educativa, mais do que pelo entendimento de que o isolamento e expulsão dos alunos que cometeram atos racistas seriam a única medida cabível. O que almejamos é a constituição de um ambiente, para alunos, familiares e profissionais, de promoção da diversidade e do respeito mútuo, um ambiente onde todas as pessoas se sintam respeitadas e valorizadas independentemente da sua raça, etnia, religião, condição social, deficiência etc”.