Pacote Anticrime de Moro pode legalizar execuções policiais, alerta advogada

Lorraine Carvalho, do Ibccrim, esteve no Espírito Santo para debate sobre o tema com movimento negro

Por Vitor Taveira, do Século Diário

Lorraine Carvalho/Reprodução/Facebook

Advogada e supervisora do Núcleo de Atuação Política do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), Lorraine Carvalho foi uma das convidadas para debater na Assembleia Legislativa do Espírito Santo em audiência pública convocada pela deputada estadual Iriny Lopes (PT), a pedido do movimento negro capixaba, sobre políticas de segurança pública e especialmente o chamado Pacote Anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro. Confira a entrevista que Lorraine concedeu ao Século Diário.

– Como você avalia o Pacote Anticrime defendido pelo ministro da Justiça, Sergio Moro?

A Ibccrim é uma das organizações que acompanha a tramitação desse projeto na Câmara e no Senado Federal. Além disso, pela gravidade da medidas, a gente iniciou em conjunto com mais de 70 organizações a campanha “Pacote Anticrime é uma Solução Fake”. Essa campanha veio justamente pela necessidade de trazer a sociedade para esse debate.

Para começar, o nome do projeto já é totalmente controverso, tendo em vista que ninguém é a favor do crime. Claro que é um contrassenso colocar o nome de propostas legislativas dentro da área de segurança pública como anticrime. Já começa aí uma artimanha para deslegitimar qualquer crítica ao projeto. Mas isso não segurou a crítica que a gente possui contra as medidas, que aumenta o encarceramento em massa que já é histórico e estrutural da política de segurança pública no Brasil. Afinal, dados defasados de 2016, mostravam que o Brasil já tem a terceira maior população carcerária do mundo. E o pacote com certeza vem para legalizar uma violência estatal.

– Quais os efeitos que a aprovação desse pacote pode ter, sobretudo para a população negra e periférica?

Estamos falando, por exemplo, da possibilidade de aumento de mortes efetivamente, tanto a morte simbólica, com encarceramento, quanto a morte física, sobretudo pela possibilidade de ser aprovado esse pacote com uma alteração no Código Penal sobre excludentes de licitude relacionado especificamente à legítima defesa, com a intenção de que agentes de segurança pública possam tornar o ato ilícito em lícito. Então alegando que atuou em legítima defesa – esse ato pode ser matar alguém – o agente de segurança justifica essa ação como reação a um possível risco que ele poderia sofrer e diz que agiu diante de situações de medo, surpresa ou violenta emoção.

O Brasil possui altíssimos índices de letalidade policial, que afeta majoritariamente jovens negros e periféricos, e essa medida vem com certeza como um discurso para legalizar essas mortes, que já são legitimadas pela sociedade civil, tendo em vista que corpos negros são corpos descartáveis e essas mortes são naturalizadas pela opinião pública, sobretudo atualmente, quando o argumento é de que essa pessoa que foi morta seja suspeita de tráfico, por exemplo. Então essa mera justificativa já coloca a pessoa como inimiga e que, portanto, pode ser descartada da sociedade e executada.

– Que outros problemas enxerga na proposta do dito Pacote Anticrime?

Esse pacote vem também para reforçar outras medidas e retirar diversos direitos constitucionais, como por exemplo a justiça negocial, que vem para aumentar a disparidade entre as partes no processo. Então o Ministério Público e a pessoa acusada, tendo em vista que ela vai ser levada a confessar a prática de um ato ilícito, para além disso poder receber uma pena de prisão sem responder ao devido processo legal, que é uma garantia constitucional.

Além disso tem tentativa de alterar o código de processo penal com relação à execução provisória da pena, ainda que continue sendo medida inconstitucional, pela manutenção da Constituição Federal da necessidade de ter trânsito em julgado. Um outro ponto é a videoconferência. Em 2015, foi conquistado por meio de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça, a implementação de audiências de custódia cujo objetivo, inclusive em tratados internacionais, é a verificação e a atenção do juiz com relação a atos de tortura e abuso policial nas abordagens de rua contra a pessoa que foi detida. E essa proposta no Pacote Anticrime vem para tirar essa presença física da pessoa acusada ali naquele momento de denúncia, o que faz com que o potencial informativo e visual do juiz em relação às marcas de uma agressão ou tortura, por exemplo, sejam invisibilizadas por meio desse mecanismo de videoconferência.

Enfim, o pacote traz outras diversas medidas que com certeza vêm para afetar e reduzir  ainda mais direitos e garantias constitucionais, sobretudo contra população pobre e negra, que é a selecionada pelo nosso sistema de Justiça, que é racista, classista, patriarcal. A gente não pode esquecer que população feminina encarcerada no Brasil teve aumento estrondoso, sobretudo pelo crime de tráfico de drogas.

– Sobre o governo Bolsonaro, como avalia os primeiros meses para a questão da segurança pública e criminalidade? Quais podem ser os efeitos das políticas que o governo vem sinalizando?

A gente chama o Pacote Anticrime como sendo do ministro Sergio Moro, mas foi uma discussão que tivemos no evento que aconteceu na Assembleia Legislativa. Na verdade, o pacote está atrelado ao Sergio Moro, mas são medidas que dialogam muito bem com as políticas de segurança pública que estão sendo implementadas e discutidas pelo governo Bolsonaro. São políticas totalmente ineficientes e que vêm para flexibilizar violências que já acontecem historicamente no Brasil, mas que agora materializam o discurso de que alguns corpos são sim descartáveis e matáveis. Acho que para além de aumentar violência, o encarceramento, a letalidade policial, homicídios, violência doméstica, todo esse arcabouço de exclusão de determinados grupos sociais, essa política também materializa uma narrativa que está sendo comprada pela opinião pública.

Se movimento negros coletivos de base, movimentos sociais, estavam nos governos passados conseguindo alcançar certa visibilidade para discutir essas pautas e conseguir de fato serem ouvidos e respondidos de forma positiva pela opinião pública e pela sociedade civil em geral, as políticas de segurança pública do atual governo vem para materializar uma narrativa que vai colocar de novo à margem discursos e denúncias que buscam uma luta antirracista, antipatriarcal, anticapital, uma luta anti-opressão.

Então acho que a narrativa vem justamente para afastar ainda mais uma igualdade material que a gente tanto espera, prevista Constituição de 1988, com a igualdade de todos. Mas a gente ainda está tentando buscar acesso a serviços públicos muito básicos. Então nessa construção de narrativa, a materialização dessas políticas, desses discursos públicos de um presidente da República, vêm justamente para reforçar que o Brasil é racista, classista e que o projeto de governo é excluir e marginalizar determinados grupos sociais.

– Que tipo de política entende que poderia ajudar a combater a violência?

Acho que pensando num contexto de racismo, patriarcalismo e classismo estruturais, dentro de um sistema capitalista, as políticas só serão efetivas quando vierem para desestruturar essas opressões históricas, sociais, políticas e econômicas. Mas claro que nenhuma política pode ser nacionalmente efetiva porque temos que considerar que os territórios têm suas particularidades e suas regionalidades que precisam ser respeitadas e consideradas na construção de políticas que serão efetivas de fato.

É preciso conhecer o território em que você atua e construir um debate coletivamente para que essas políticas sejam de fato discutidas e pensadas nas suas adequações e necessidades para a gente conseguir atingir o objetivo de diminuir o número de mortes, acabar com o cárcere enquanto política primeira de segurança pública. A discussão do que seria ou não efetivo só vai acontecer quando isso for construído coletivamente com as pessoas que estão nos territórios entendendo as necessidade de cada local, ainda que existam opressões estruturais e estruturantes na construção social, política e econômica do Brasil.

Quando a gente fala que em alguns territórios a democracia não foi implementada, é porque ela não foi de fato. Foi construída para não chegar nesses lugares. Não à toa que a população negra e indígena passou e ainda passa por um intenso processo de gentrificação, o que significa em outras palavras que as pessoas foram literalmente jogadas à margem dos centros de comércio, de acesso à saúde, educação e essa exclusão de onde circula a chamada cidadania vem justamente para que a gente não possa exercer nossos direitos civis políticos e econômicos. E isso só vai mudar quando a gente construir políticas em conjunto e não medidas que venham de cima para baixo.

– Que percepções você tem da realidade do Espírito Santo em relação à violência e segurança pública?

Eu sou de São Paulo e meu conhecimento sobre outros estados é muito baseado em dados e pesquisas, tendo em vista que para mim a mídia de massa não é fonte confiável de informações para refletir a realidade local.

As informações sobre o Espírito Santo vêm de dados como o  Infopen Mulheres de 2016, levantamento feito sobre população feminina, sendo que 71% dessa população que estava encarcerada era por conta de crimes de tráfico de drogas, que é um número acima da média brasileira, o que leva a crer que a política de drogas no Estado é responsável por grande número de encarceramento.

Outra informação é a quantidade de presos sem condenação, de presos provisórios, que no Espírito Santo gira em torno de 42%, sendo que 68% destes estão encarcerados há mais de 90 dias, realidade que está um pouco acima da média nacional. Além disso, a taxa aprisionamento é a sexta maior do país, muito alta levando em conta que existe um déficit de vagas, o que significa que há uma superlotação no sistema prisional do Espírito Santo.

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