A hipocrisia do aborto no Brasil

A médica Neide Machado foi achada morta dentro de seu carro no último domingo, em Campo Grande. Junto, um bilhete, um caderno e o seu celular. Em editorial da Comissão da Cidadania e Reprodução, a psicológa Margareth Arrilla, diretora-executiva da CCR, fala sobre da Neide e a hipocrisia do aborto no Brasil .

 

por Margareth Arrilla, Fonte: CCR

Thinkstock/Getty Images

Conheci Neide Mota pessoalmente em 2008, durante visita feita a Campo Grande por  um grupo de mulheres  feministas que visavam compreender a situação crítica que envolvia a invasão da Clínica de Planejamento Familiar de Campo Grande – da qual a médica anestesista era proprietária – pela polícia local. Tal ação ocorreu após veiculação   de matéria pela Rede Globo local e demanda encaminhada ao Ministério Público por Deputados Federais, especialmente Luiz Bassuma, líder da Frente Parlamentar em  Defesa da Vida – contra o Aborto e membro do Movimento Brasil sem Aborto, punido por seu ex-partido, o PT.

 

O caso envolveu a médica anestesista, outros profissionais, e muitas mulheres. Milhares de mulheres. Cerca de 10.000, que por mais de 20 anos recorreram a este espaço para solucionar o desejo de não ter filhos. Criticada por muitos e muitas, Neide era uma mulher, no mínimo, controversa e ousada. Afrontava o poder público, as autoridades locais, denunciava a hipocrisia de instituições e de personagens  que, segundo ela mesma contava, não se furtavam a levar mulheres jovens para sua  clínica e pagar por abortos que os livrariam de situações públicas vexatórias, e/ou de compromissos éticos, morais e financeiros futuros. No mundo público a crítica ao direito de decidir. No mundo privado, o pagamento em cash.

 

O caso de Neide Mota e de sua clínica de planejamento familiar faz pensar. Neide, entre o Estado e o mercado, chegou a ser procurada para servir como referência e parceria para a realização de abortos legais pelo SUS, o que a tiraria da clandestinidade e, de outro lado, estar envolvida e denunciar o desrespeito aos direitos humanos cometidos naquela cidade.

 

A invasão de sua clínica suscitou perguntas que até o momento não estão totalmente respondidas: por que a visita sorrateira da Rede Globo àquela clínica naquele momento? Como foi possível tanta rapidez entre o programa televisivo e a demanda de ação por parte do deputado Bassuma em acionar o Ministério Público para denunciá-la?Por que tamanha exposição do processo que envolvia tantas mulheres,  significando uma moderna degola de mulheres em praça pública? Como justificar a falta de disposição dos Conselhos Éticos de Medicina em mostrar irregularidades do poder  judiciário ao não preservar a confidencialidade dos prontuários médicos recolhidos na  clínica pela Polícia? Como esquecer que o poder Judiciário deixou durante algum tempo estes processos ao sabor do vento, sendo manuseados livremente, tendo fichas eliminadas? Como esquecer que algumas mulheres foram “escolhidas” para servirem  como “bois de piranha” e assim deixarem o campo livre para a construção do plano  maior de aniquilamento da imagem pública de Neide Mota? Como justificar o recuo da Justiça e do Direito neste universo que criminaliza e mata mulheres?

 

Tudo indicava desde aquele momento que o que se desejava era uma ação exemplar. E foi assim, do começo ao fim. A morte de Neide Mota, capítulo final de outra novela da vida, vai ao ar praticamente ao mesmo tempo em que a rede Globo circula um novo sermão eletrônico, ou seja, capítulos de sua novela das 8 que incentivam a culpabilização de todas/os as/os telespectadores que chegarem a pensar no aborto como um direito. Parece um jogo metafórico e ideológico dos mais potentes. Novas formas discursivas entram em ação e se potencializam. Mídia e Igreja dando as mãos, numa aliança fraterna e inequívoca, para impedir os avanços da autonomia sexual e reprodutiva, da liberdade e da solidariedade da população brasileira, particularmente de todas as mulheres.

 

Mas estão enganados senhores. As mortes de Neide e outras mulheres que sofrem com seus abortos clandestinos, só trarão maior visibilidade às injustiças que se cometem neste país. Segundo estimativa da Organização Mundial de Saúde, mais de trinta por cento das gravidezes no País terminam em abortamento, de modo que, anualmente, ocorrem aproximadamente um milhão e quatrocentos abortamentos inseguros – clandestinos ou espontâneos -, o que representa 3,7 ocorrências para cada cem mulheres de quinze a quarenta e nove anos.

 

De acordo com o Ministério da Saúde, 250 mil é o  número médio de mulheres internadas anualmente em hospitais da rede pública de saúde para fazerem curetagem na região do útero após um aborto inseguro. A maioria delas é jovem, pobre e negra. A prática de abortamentos em condições clandestinas no  Brasil tornou-se um grave problema de saúde pública, responsável pela quinta causa de  mortalidade no país, a primeira causa dessas mortes em Salvador, desde 1990, e a  terceira causa em São Paulo. O abortamento provoca mais mortes de mulheres negras  (pardas e pretas) que de mulheres brancas, e seu peso, como causa de mortalidade, é maior nas faixas etárias das meninas até quinze anos e das mulheres entre trinta e trinta  e nove anos.

 

Neide possivelmente iria a Júri Popular nos próximos meses, e quem sabe, talvez  chegasse a usar de sua tribuna para falar, uma vez mais. Falar da hipocrisia nacional  quando se trata de direitos reprodutivos, que a uns e umas tudo permite, e a outras, cala,  mente e mata.

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