A incrível insistência de VOCÊS em tutorar e explicar aos negros como devemos ser, agir e pensar! “Síndrome do salvador branco” no país da “democracia racial”?

Falar sobre racismo não significa que gostamos de falar sobre racismo, mas sim que vivemos em um mundo, em um país que falar sobre tal assunto, sobre tal realidade é necessário para combater esse mal que nos macula e nos torna cada vez menor enquanto sociedade. Aliás, sociedade mais que propensa em ocultar para baixo do tapete toda e qualquer situação que macule o seu ideário de terra racialmente democrática e socialmente harmoniosa. Organismo social que postasse inerte ante a escalada cotidiana dos sentimentos de ódio e desprezo, como que naturalizando os mesmos, em suas práxis de desumanização ante aqueles que rotula e estigmatiza enquanto os “outros”, os “inferiores”.

Racismo é crime! É o ódio contra a diversidade da vida humana. Sem perdão ou paliativo, muito menos justificativas, que possam contemporizar seus efeitos, suas sequelas. Nada que se faça enquanto hediondo deve-se ser relevado ou subestimado, pois suas potências destrutivas são quase infinitas. 

Nesse sentido não nos venham – vocês que se colocam acima do bem e do mal ante as questões raciais brasileiras – pautar por sua ótica de que o “racismo só existe quando eu falo sobre ele” ou de que “não devemos nos deixar abalar por situações desse tipo”. Fora a mesquinhez moral e a incapacidade de empatia em se colocar no lugar dos vitimados por tal fenômeno histórico e social, pois é só olhar a sua volta para perceber que suas premissas individuais – os famosos “sensos comum” trajados de verdades incontestes – não correspondem aos fatos que caracterizam historicamente os cotidianos de nossas relações sociais, sempre medidas e enviesadas pela nossa essência estamental e racista. Entendam de que sua opinião de nada vale ante o que nos persegue e mata, sem trégua, sem perdão ao longo dos séculos. Nossas dores, nossas lágrimas e desespero, não cabem em suas lupas de ignorância, anguladas por sua falsa perspectiva de superioridade moral em acabar por relativizar os racismos nossos de cada dia. Isso quando não promulga as falácias em devaneio, canalhas de tão irresponsáveis e irracionais, de racismo reverso, revanchismo ou vitimismo-coitadismo.

Vocês não respeitam o nosso sofrer, assim como não toleram nossos processos de resistências, e ainda querem nos culpabilizar por aquilo que nos vítima? Que realidade é essa em que vocês vivem? Que equipara ou, pior, que criminaliza de fato a quem combate as causas de seus males, de suas dores? 

Em vez de vocês direcionarem suas critcidades aos fatores que geram tal realidade nefasta, optam em confrontar justamente a quem? Sem esquecermos de citarmos a característica que vocês exercem de neutralidade ante situações mais conflitivas ou complexas, “esquecendo” de que ser neutro, ou agir enquanto pretenso alienado em realidades de abuso ou opressão, é ser no mínimo cumplice daqueles que geram e propagam esse grande mal de nossa sociedade. E querer dizer como as pessoas vítimas do racismo devam agir ou portar-se é como atingir as raias da canalhice e covardia intelectual e política.

Então, quando vocês se indagarem, pretensamente indignados, do porquê nós “não cansamos de falar sore racismo”, comecem a:

1-) refletir o real motivo dessa postura de incomodo não com o racismo em si, mas com aqueles que procuram desmascará-lo e combatê-lo;

2-) buscar responder por qual motivo vocês se colocam enquanto sujeitos a margem, no sentido de superioridade a essa problemática, em vista de também estarem inseridos a esta mesma realidade por sermos todos presentes aos processos de relações sociais e históricas que caracterizam os processos de racismos inerentes a formação e caracterização da sociedade brasileira;

3-) questionar as suas buscas em sempre minimizar os efeitos do racismo, quando não negar a existência do mesmo, como se tal fenômeno histórico e social fosse realidade estranha as “coisas da nossa terra”.

Sobre o racismo falamos e continuaremos por falar, enquanto este se fizer presente em nossos cotidianos, enquanto por ele formos estigmatizados e penalizados, pelo simples fato de sermos quem somos, como somos e de como almejamos vir a ser. Sempre em objetivo de construir uma sociedade de fato antirracista, em que nossa negritude não seja mais negada em sua existência, em suas diversidades e pluralidades. Não deixaremos, portanto, de discutir ou problematizar sobre o racismo, até para que não ousem mais querer falar por nós, nos tutorar em nosso agir e pensar, enquanto vilipendiam e distorcem as nossas historicidades e trajetórias a seu bel prazer, sempre acabando por perpetuar e ratificar os nossos processos de socializações – formais ou informais – baseados em nosso arcaísmo social e racismo estrutural.

Para que fique tudo posto em debate, sem máscaras ou jogos de meia luz, não nos venham com Ali Kamel, Leandro Narloch ou Mary Del Priore, dentre tantos outros de mesmo nape, pois nossas referências e construções intelectuais-ideológicas são amplas e diversas, plurais em suas perspectivas e recortes, para muito além dessa vulgata pseudo pensante que vocês endossam e replicam conceitualmente enquanto o suprassumo do pensamento social brasileiro e de nossa problematização racial. Enquanto vocês vociferam falsas verdades da branquitude sistêmica, vamos gerando novas quilombagens intelectuais, novas guerrilhas pensantes, em diálogo constante com nossas sapiências ancestrais e contemporâneas como Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Candeia, Carlos Assumpção, Carolina de Jesus, Cidinha da Silva, Clóvis Moura, Conceição Evaristo, Daniela Vieira, Drika Barbosa, Djonga, Dona Ivone Lara, Du Kid Artivista, Elias Aredes Júnior, Édson Carneiro, Emicida, Fabi Albuquerque, Flávia Rios, Geraldo Filme, Gilberto Gil, Itamar Assumpção, Ismael Ivo,  Januário Garcia, Jaqueline Santos, Joel Zito Araújo, Jorge Ben, Jules Ventura, Liniker, Kamau, Kassandra Muniz, Leci Brandão, Lélia Gonzales, Luiz Gama, Luiz Melodia, Marcelo D’Salete, Marciano Ventura, Mário Augusto Medeiros da Silva, Marcelo Assumpção, Márcio Farias, Matheus Gato de Jesus, Maurício Pestana, MC Soffia, Milton Barbosa, Oswaldo de Camargo, Paulo Lins, Paulo Moura, Racionais MC’s, Rappin’ Hood, Rincon Sapiência, Sandro Moura, Sérgio Vaz, Sílvio Almeida, Sirlene Barbosa, Sueli Carneiro, Tainá Santos, Teófilo Reis, Thaíde, Walter Firmo e Zé Kéti…

Exemplos – entre tantos mais que também poderiam ser citados – de nossas diversidades, de nossas pluralidades de saberes e conhecimentos. Representações intelectuais vivas, orgânicas e sofisticadas. Elaboradas enquanto expressões de historicidades, de negritudes em máxima qualidade e efervescência.  Potências transformadoras, inquietas e transgressoras em existência e significados, que tanto nos inspiram e fortalecem na nossa busca em denunciar, problematizar e combater o racismo. 

O nosso falar NUNCA é ato fechado em si, ou para acalentar egos em crise, mas sim construção de saberes que visam interagir ao mundo, visando a transformação do mesmo e consequente melhoria de vida aos nossos. Essa é a meta, a nossa meta, dá para entender isso? Qual a dificuldade em olhar ao mundo pelos olhos de outros? É alienação ao extremo ou outra coisa que vocês não conseguem ter a coragem de enfrentar dentro de si mesmos? 

E mesmo assim, ainda insistem em querer nos ensinar como devemos agir, ser e pensar? Querendo definir os limites de nossas humanidades? Ah, sinhozinhos e sinhazinhas, tomem tenência, se enxerguem. Pensam que enganam a quem? Ao não buscar compreender nossas lutas, ao nem tentar respeitar as batalhas que travamos nesse sentido, já sabemos de que lado da História vocês valsam. E quando devidamente confrontados, posam de vítimas, emulando de maneira distorcida e oportunista o discurso de “liberdade de expressão” ou de “liberdade de pensamento”, para assim mascarar o racismo e preconceitos de suas chorumosas erudições, pretensamente intelectuais.

Não gostamos, enfatizo, de falar sobre racismo, mas é preciso fazê-lo, até para que a mentira não se torne verdade, para que o mal não se torne doce como mel, para que o absurdo não se torne cotidiano, para que a mediocridade não se torne referencial, para que nossas histórias não sejam jogadas ao vento, esquecidas ou deturpadas por falácias intelectuais que em prática pouco se importam conosco enquanto seres humanos. Mas que nos utilizam e classificam enquanto objetos imateriais para enriquecer seus currículos, para tornar mais vistosa sua aparência enquanto pensadores-formadores de opinião. E vocês além de nos questionar, ousam querer nos ensinar o que é racismo e como devemos agir politicamente ante ele? 

E não nos venham com o discurso de que devemos respeitar as “pluralidades” ou “diferenças de opiniões”, sendo que vocês mesmos só reconhecem essas premissas quando condizentes as suas perspectivas de classe e raça. Coincidência ou não, sempre acabando por coadunar o status quo vigente, e classificando os que com elas possuem divergências, enquanto os “outros”, os “radicais” e “perigosos” que devem ser constantemente vigiados e controlados, para que tudo permaneça como está… Afinal de contas, que pluralidade de ideias e conceitos é essa que nunca leva em consideração os saberes e as perspectivas dos que sempre foram marginalizados em seus direitos e oportunidades? Que pluralidade é essa que sempre vaticina nossa origem estamental e senhorial? Quem disse que dependemos de vocês para que nossas vozes, potências e saberes se façam respeitados?

Cresçam e apareçam, se curem dessa “síndrome de salvador branco(1)”, busquem ajuda, sei lá… Se quiserem, continuem a servir farelo aos que te compram, mas não ousem querer tutorar aos meus! Recolham-se a sua insignificância e busquem conviver com a sua própria mediocridade! E nos deixem em paz… 

Será que é pedir muito? Ou é preciso desenhar para vocês? 

Nota Explicativa:

(1) Expressão referente ao conceito antropológico do “white savior complex”, desenvolvido a partir do momento em que os colonizadores-exploradores-invasores europeus passam a impor seu modo de vida, hábitos e costumes, perante aos povos por eles considerados enquanto bárbaros e primitivos de África e Ásia. Numa ação de naturalização do racismo e preconceito religioso, os associando como incompatíveis, como dissociados de qualquer forma de expressão civilizatória inerentes a modernidade.  Uma característica, portanto, racista e preconceituosa que continua a influenciar as atuais relações sociais ocorrentes nas sociedades ocidentais. Especialmente em um país como o Brasil, balizado por sua questão racial não resolvida.

Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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