“A luta antirracista e a luta antissexista é uma luta de toda a sociedade”, Maria Sylvia Aparecida de Oliveira

Enviado por / FonteKatia Mello

Artigo produzido por Redação de Geledés

Balanço geral

Na última coluna do ano, Geledés no debate deu voz à sua presidenta Maria Sylvia Aparecida de Oliveira em entrevista que faz um importante resgate dos principais acontecimentos do ano e projeções futuras da organização.

Advogada, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Maria Sylvia iniciou sua militância como estagiária de direito no programa SOS – Racismo, no departamento jurídico do Geledés em 1994, quando trabalhou diretamente com uma das fundadoras da organização, a advogada Sonia Nascimento. Maria Sylvia se tornou sócia efetiva do instituto e ocupará o cargo na presidência até 2021.

arquivo pessoal

Geledés – Em abril, o Geledés comemorou 30 anos de jornada com um seminário em que foram analisadas as conquistas e os desafios da organização nesse período. Quais foram os principais pontos debatidos e suas conclusões?

Sim. O aniversário de 30 anos foi um marco significativo para uma organização feminista e principalmente do movimento negro, portanto era necessário celebrar, compartilhar e reafirmar nossos compromissos com os direitos humanos, o respeito à diversidade, e o orgulho por conseguirmos colocar o racismo e as mulheres negras no centro dos debates sobre os desafios da sociedade brasileira.  Realizamos uma série de seminários que recuperaram a história de Geledés, sua atuação e inserção no cenário nacional como ator político importante nas discussões sobre as questões de raça e gênero, e também para a consolidação de políticas públicas para mulheres e negros, como formas de garantia do princípio da igualdade de oportunidades na nossa sociedade. Os eventos possibilitaram recuperar a memória dos principais projetos realizados por Geledés, bem como a realização de avaliações críticas por distintas gerações de militantes sobre o legado de lutas e conquistas dos movimentos de mulheres e negros nas últimas três décadas, assim como reflexões sobre os cenários futuros e os desafios para o avanço das agendas de lutas antirracista e antisexista.

Temos conquistas de extrema importância, na legislação, na saúde, na educação, onde faço destaques para a Lei 10.639/03 que enfrentou o eurocentrismo na educação, e as ações afirmativas no ensino superior, com as cotas raciais e sociais que as mulheres, em particular as mulheres negras, abraçaram de maneira estratégica, pois sabem da importância da educação para alavancar mudanças em suas vidas, e com isso elas alteraram a configuração das universidades públicas e privadas do país. Mas precisamos avançar muito mais, pois apenas 0,4% (219) das professoras doutoras na pós-graduação do Brasil são negras enquanto as brancas são 10 mil.

Outra área que expressa a seletividade racial é o mercado de trabalho, onde informações sobre programas empresariais de diversidade e inclusão racial informam que no quadro executivo negros são 4,7%, comparados com 94,2% de brancos; nos conselhos de administração são 4,9% e brancos 95,1% de brancos.

Mas todas essas conquistas esbarram na impossibilidade de garantirmos o direito à vida da população negra, que segundo os dados de 2016, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 eram negros. Portanto, o racismo institucional é um gigantesco entrave na luta pela emancipação dessa população.

Geledés – Entre as novidades que fizeram parte do aniversário, surgiu esta coluna, Geledés no debate, que vem publicando matérias realizadas pela própria organização. Como vê o impacto dessa produção interna?

A coluna Geledés no debate conta com a participação de pessoas comprometidas com os direitos humanos, as lutas antirracista e antisexista, cujas vozes e posicionamentos são relevantes para o avanços das temáticas.

Outra inovação que contribuiu para aumentar a interlocução com os nossos leitores é o canal YouTube Geledés, onde buscamos novas formas de reverberar nossos temas e alcançarmos outros públicos. Compreendemos a comunicação como espaço estratégico para sensibilizarmos as novas gerações para o necessário compromisso com a defesa dos direitos humanos.

Neste ano, a coordenadora e fundadora do Geledés, Sueli Carneiro, recebeu o prêmio Trip Transformadores 2018, que em sua 12ª. edição teve como temática “Conviver é possível?”. Sueli também recebeu um selo com seu nome, em que o primeiro livro lançado por ele foi Sueli Carneiro: “escritos de uma vida”, uma reunião de seus mais importantes artigos já publicados. E por último, de forma até divertida, Sueli foi homenageada com uma cerveja que leva o seu nome, criada pela Confraria Goose IslandSisterhood. Qual a relevância do legado da filósofa e escritora Sueli para a população negra, em especial as jovens negras?

Sueli Carneiro é uma importante representante do movimento feminista, uma referência sobre a questão racial e sobre as mulheres negras, um patrimônio histórico, cultural e político brasileiro, conforme destacado por Djamila Ribeiro. Portanto, digna de todas as homenagens que recebeu por sua trajetória em defesa dos direitos humanos. Outro destaque representou o Prêmio Itaú Cultural 30 anos, em junho de 2017, que homenageou pessoas com atuação relevante na vida artística do nosso país. Agora, a cerveja Sueli é forte como ela (risos).

Geledés – Outra coordenadora e fundadora do Geledés, a advogada Sônia Nascimento, também foi homenageada por sua trajetória. Sônia é uma das responsáveis pela implantação de dois programas na instituição, o SOS Racismo e Projeto de Promotoras Legais (PPLs).  Qual a significância desse reconhecimento e qual a relevância destes programas para a população negra brasileira?

Conheci a Dra. Sônia Maria Nascimento, quando entrei no Geledés, em 1994, ainda como estagiária de direito, no SOS Racismo, projeto implantado por ela, de assistência jurídica gratuita às vítimas de racismo, que teve enorme demanda por seu compromisso com a criminalização do racismo, foi pioneiro no país e inspirou projetos semelhantes. Sônia atualmente é a responsável pelo projeto Promotoras Legais Populares (PLPs), um curso voltado para mulheres, que forma lideranças comunitárias multiplicadoras de direitos, com a defesa da cidadania, além de comprometidas com o enfrentamento a violência contra a mulher. O projeto PLPs se confunde com a figura da Sônia, pois ela é a alma deste projeto, ao acolher, escutar e defender Geledés e todas as mulheres que passam pela sua vida, além daquelas com as quais ela tem pouco ou nenhuma intimidade. Eu tenho muito orgulho em auxiliá-la na condução do projeto PLPs e a premiação reconhece sua atuação e seus compromissos.

Geledés – A chapa “Coragem e Inovação” para as eleições da OAB de São Paulo, liderada pelo atual secretário-geral da organização, Caio Augusto, contou com expressiva participação de mulheres, inclusive a sua, vencendo as últimas eleições. Por que resolveu participar dessa chapa e o que representa essa vitória para as mulheres negras?

Fui convidada para compor essa chapa pela Dra. Maria das Graças P. Mello, conselheira reeleita e aliada na luta antirracista. Aceitei participar da chapa, pois acreditei na chance de termos uma OAB/São Paulo mais comprometida com as reivindicações das mulheres – nossa chapa era a que tinha o maior número de mulheres em sua composição, 38% dos membros. Além disso, propomos também que as Comissões de Estudo sejam também presididas pensando a paridade de gênero, algo absolutamente inédito na instituição. Evidentemente a participação de advogadas e advogados negros e negras também integrou a pauta de reivindicações, a valorização da advocacia negra, elaborada pelo Coletivo Independente de Advogadas e Advogados Negros, que foi aceita integralmente e que ajudará numa maior inserção da advocacia negra nos quadros da OAB/SP. Então a próxima gestão da OAB/SP contará com a participação de sete representantes da advocacia negra – cinco mulheres e dois homens, um número muito modesto, visto que são 160 conselheiros no total. Todavia, é a primeira vez na história da OAB, em seus quase 80 anos, que sete advogados e advogadas negros e negras farão parte do Conselho da OAB/SP, órgão máximo de decisão da instituição. Buscamos, portanto, com esta participação incentivar e trazer para dentro da OAB outras e outros advogados e advogadas negros e negras, para que nas eleições de 2020 possamos ser no mínimo 20% de negros e negras nos espaços de gestão da instituição. Para isso convidamos a advocacia negra para que se aproxime mais da OAB, frequentem suas subseções, atuem nas Comissões de Estudos na capital, interior e litoral. Precisamos que a advocacia negra nos ajude nesta nova gestão a, definitivamente, transformar a OAB em uma instituição democrática e plural.

Geledés – No mês dezembro, Geledés também recebeu o Prêmio Quilombação por sua área de atuação, em cerimônia realizada na Câmara dos Vereadores de São Paulo. Qual a relevância do prêmio?

Durante esses 30 anos foram muitos os prêmios recebidos por Geledés por sua atuação em direitos humanos e em defesa dos direitos da população negra. Neste ano, recebemos homenagem da UNEAFRO com o prêmio Marielle Franco de Direitos Humanos e Educação Popular, em abril de 2018; depois o Prêmio Abdias do Nascimento e Beatriz Nascimento, concedido pela Rede Quilombação, em dezembro de 2018, ambos agraciando  organizações e personalidades do movimento negro em razão de suas atuações. Esses prêmios representam o reconhecimento de nossa trajetória e compromissos com a luta antirracista e antissexista

Geledés – Em 2018 se comemoram 70 anos de direitos humanos. Quais os maiores desafios dessa área para os próximos anos, em especial em relação às mulheres negras e quais os planos de Geledés para o próximo ano?

Entendo que o maior desafio quando falamos de direitos humanos num país estruturado pelo racismo é fazer com que a sociedade enxergue negros e negras como sujeitos de direitos e, portanto, também beneficiários de direitos humanos. A população negra sofre violação de seus direitos sistemática e cotidianamente. Em uma simples análise de dados do IBGE, IPEA, FBSP-Fórum Brasileiro de Segurança Pública ou outros institutos de pesquisa que trabalhem dados sobre as condições de vida da população com recorte de raça perceberá sobre o que estamos falando. Se o recorte for gênero e raça, a situação que já é grave fica muito mais agravada. Em razão disso, o Geledès, em 2016, elaborou em parceria com a ONG Criola, do Rio de Janeiro, o dossiê: Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras – Violências e Violações, – uma compilação de dados oficiais sobre o impacto do racismo estrutural e institucional sobre a vida das mulheres negras. O assassinato de Marielle Franco, no dia 14 de março de 2018, é um triste marco na luta das mulheres negras por emancipação da população negra. Marielle, mulher negra, pobre, favelada, lésbica morreu por acreditar ser possível uma sociedade sem racismo, sem desigualdade, com mais oportunidades para a população negra. Uma parcela significativa desta população que nunca vivenciou o tão propalado Estado Democrático de Direito.

Portanto, nosso maior desafio para os próximos anos quando se trata de efetivação dos direitos humanos para a população negra é fazer com que a sociedade desnaturalize a violência sofrida por essa parcela da população; é fazer com que a sociedade deixe de achar que é natural a pilha de corpos que a manutenção dos privilégios da população branca produz, num verdadeiro genocídio cometido contra a população negra.

Quanto aos planos do Geledès é continuarmos na busca de estratégias para combater o racismo estrutural e institucional, através de denúncias nas instâncias nacionais e internacionais, advocacy, proposição e monitoramento de políticas públicas, proposição e acompanhamento de ações afirmativas e sempre a formação através da educação popular, como o projeto PLPs.

Geledés – Quais são as perspectivas da luta antirracista e antissexista?

Eu quero ser otimista e acreditar que existe a possibilidade de transformarmos nossa sociedade. Existem muitas organizações, muitas pessoas que acreditam e lutam por uma sociedade mais igualitária, mais plural e inclusiva. A luta antirracista não é uma luta apenas de negros e negras, até porque não fomos nós que inventamos o racismo, assim como a luta antissexista não é uma luta apenas das mulheres. A luta antirracista e a luta antissexista é uma luta de toda a sociedade. Não basta não ser machista, é preciso que os homens se descontruam todos os dias para construírem-se numa masculinidade não violenta e que estejam ao lado das mulheres para que a agenda de igualdade de gênero se cumpra. Não basta também não ser racista, é preciso ser antirracista, reconhecer seus privilégios enquanto pessoa branca e travar uma luta diária para que esses privilégios não sejam a fonte de negação de direitos de negros e negras.

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