Discursos não são livres. Assim pontuou Michel Foucault em um dos seus principais textos, de 1971. Há estruturação, angulação, filtragem e mecanismos específicos para limitar e condicionar o que tal expressão da linguagem pode ou não apresentar à sociedade, reflete a obra “A Ordem do Discurso”. Não são livres em absoluto nem os discursos nem quem discursa, mas ambos partem sempre da mesma premissa: a intencionalidade.
Ler, com certa frequência, permite que se aprenda sobre o passado e os discursos que imperavam —ou, pela retórica, fingiam não imperar. Neles, há verdades e mentiras, numa valsa contínua embalada pela humana dinâmica do ser no tempo e no mundo. Assim se percebe, quando há atenção e rigor na leitura, o quanto temas atuais já foram apresentados e problematizados dentro dos contextos que lhes deram origem.
A sensação é, por vezes, a de que o passado parece se perpetuar como uma espécie de presente contínuo que deixa rastro. Fica sem deixar de ir. Desse paradoxo, restaria questionar o que sobra para o futuro. Como prosseguir? Como sair da eterna introdução ao ontem, ao sabido, ao discursado? E, principalmente, por que muitos autores e autoras contemporâneos, sempre que a realidade pulsa pela necessidade de questões mais complexas para que se possa avançar em temas sensíveis, constroem suas elaborações discursivas com certa amnésia histórica que exclui referenciais teóricos importantes e invocam para si um narcísico pioneirismo?
A maldição da eterna introdução. Exemplifico a seguir.
Explodem casos de racismo, as leis já determinam que injúria é crime, que discriminação deve ser punida pela justiça. Surgem, novamente, discursos introdutórios —na academia e nas mídias jornalísticas e sociais— que voltam o tema para suas bases mais elementares, não no intuito didático e introdutório, mas como recurso de controle da pauta para que ela não avance e se lance às especificidades espinhosas do tema que exigem ações efetivas. “O que é racismo?”, “Por que racismo é crime?” e, intencionalmente, o debate não avança. São estes alguns enunciados que ressurgem e ganham destaque sem nem dar o devido crédito a quem, exaustivamente, abordou o assunto num passado recente.
Um cinismo retórico que não consegue nem ao menos admitir —ou nem se prestou a pesquisar— que já em 1979, na 15ª edição do periódico independente Lampião da Esquina, Abdias Nascimento dava uma entrevista na qual abordava falsa democracia racial, o papel da igreja na manipulação do negro pobre, a falta da presença do negro —enquanto maioria da população— no Estado, o discurso da mestiçagem como apagamento da identidade negra, esquadrões da morte, as forças ditas progressistas se mostrando reacionárias quanto à pauta das relações raciais, a organização de movimentos negros com representação institucional e a ineficiência da Lei Afonso Arinos (promulgada em 1951 durante o governo de Getúlio Vargas) referente à punição em casos de discriminação racial.
Discursos não são livres e podem prender a sociedade na eterna introdução que a impede de articular os conhecimentos acumulados ao longo da história. Articular, não só acumular.
A pergunta que fica é: como avançar para os parágrafos seguintes?
Veny Santos
Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de “Batida do Caos” e “Nós na Garganta”.