A Universidade de São Paulo e os seus tribunais raciais

Suposta atitude não republicana ajudará instituição a desmantelar outros tribunais

Em março, a Universidade de São Paulo gerou controvérsia ao barrar um aluno por não considerá-lo pardo. Como de costume, logo apareceram os críticos às cotas raciais.

Aqui na Folha, por exemplo, a colunista  Lygia Maria comparou as bancas de avaliação fenotípica aos tribunais raciais de regimes eugenistas. Wilson Gomes seguiu caminho semelhante ao argumentar que tal política era uma esquisitice republicana.

Agora que a pauta parece ter esfriado, é possível discuti-la sem se deixar influenciar pela repercussão gerada pelas reações emocionais do calor do momento, quando muitos são seduzidos a criar argumentos para agradar a torcidas. No entanto, analisar política pública não se resume a inflamar torcidas para promover audiência.

Política pública é sobre a vida das pessoas. É sobre avaliar os custos e benefícios de cada intervenção. É buscar criar soluções mais eficazes para que cada membro da sociedade possa atingir seu potencial. Discutir política pública significa ir além de nossas crenças e examinar cuidadosamente a literatura sobre o assunto.

Em debates relacionados às minorias, isso é ainda mais emblemático. Muitos têm algum ressentimento derivado de atitudes, nem sempre republicanas, de militantes que estão na linha de frente lutando por mudanças. No entanto, apesar dos desconfortos gerados por tais atitudes, uma rápida olhada na literatura ajudaria muitos a entender a profundidade dessa agenda.

As desvantagens enfrentadas pelos negros começam antes mesmo do nascimento. Estudos mostram a existência de disparidades no desenvolvimento das crianças negras resultantes das condições socioeconômicas e do viés racial durante o período de gestação (“Essays on Economics of Education: Racial Inequality, Social Norms, and Childcare Impact on Schooling“). Após o nascimento, as próprias famílias podem discriminar investindo mais na educação do filho de pele mais clara (“Is parental love colorblind? Human capital accumulation within mixed families“).

Na escola, também há evidências de que os professores discriminam as crianças negras (“Racial Discrimination in Grading: Evidence from Brazil“). Uma vez no mercado de trabalho, mesmo quando analisamos trabalhadores com características produtivas semelhantes, os negros recebem cerca de 14% a menos que os brancos, um padrão que tem se mantido constante ao longo dos últimos 40 anos (Números da Discriminação Racial).

Desse modo, um pequeno esforço em procurar olhar para evidências ao emitir uma opinião leva à conclusão de que o Brasil, em si, é um grande tribunal racial que gera uma competição desleal para os negros. Confesso que demorei um tempo para compreender isso, pois não tinha o menor interesse pela agenda racial. No entanto, a própria USP ajudou nesse processo.

Não faz muito tempo que estudei lá. Quando entrei na instituição, ainda não havia cotas e não era incomum os professores mencionarem que eu lembrava um jogador de futebol. Embora, dentro das quatro linhas, minha habilidade com a bola nunca tenha me permitido ultrapassar duas ou três embaixadinhas.

Com o tempo, o dia a dia na universidade foi revelando que muitos ali não pareciam tão acostumados a ter a presença de um aluno de pele mais retinta, talvez tampouco de um que tinha um bom desempenho acadêmico. Minha presença e a de outros pouquíssimos pretos na instituição representavam a quebra de um imaginário da posição do negro na sociedade brasileira.

Certa vez, um colega da elite carioca comentou: “Não sei como uma pessoa como você tira notas altas”. Bem, dada a baixa expectativa que muitos têm em relação aos negros, é possível que até hoje eu continue surpreendendo não somente a ele como também parte dos professores que tive naquela instituição e fora dela.


O texto é uma homenagem à música “Umbabarauma”, composta por Jorge Ben Jor, interpretada por ele e Mano Brown.

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