Recentemente, o Governo Federal, por meio da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou que iria “ajudar” uma criança capixaba de 10 anos que sofreu violência sexual durante anos, supostamente de seu tio, e ficou gravida. A mensagem da ministra, por meio de redes sociais, despertou a atenção do país ao caso, especialmente de grupos religiosos contrários ao aborto.
A avó da criança, sua representante legal, decidiu exercer o direito de realizar um aborto legal e seguro, já que este caso se enquadra em uma das circunstancias em que o aborto está permitido. Além de ser o resultado de violência sexual, a gravidez de uma criança de 10 anos, cujos órgãos reprodutivos não estão completamente desenvolvimentos, é considerada de risco.
Foi notícia que durante dias a família da criança sofreu de forma reiterada acosso e pressões de grupos conservadores contrários ao aborto. Desde contatos com a avó para dissuadi-la de realizar o aborto, a divulgação de informações pessoais da criança, até manifestações em frente e dentro do CISAM-UPE, em Recife, cidade à qual a criança viajou para interromper a gravidez. Ante o centro, os manifestantes chamaram o médico e a menina de “assassinos” e dentro, alguns profissionais da saúde pressionam a avó para mudar sua decisão. Não conseguiram, e o procedimento de interrupção de uma gravidez fruto de violência sexual realizou-se de forma segura e com a atenção médica adequada.
Ao parecer, este fato impulsou uma nova “ajuda” do Governo Federal às mulheres de diferentes idades que querem exercer seu direito de realizar um aborto legal e seguro por uma gravidez indesejada decorrente de violência sexual. Não se trata de medidas para melhorar o combate à violência sexual contra as mulheres no Brasil, cujos dados são alarmantes. Não se trata tampouco de anunciar projetos que promovam a igualdade de gênero e a educação sexual nas escolas, como meios para informar e prevenir a gravidez precoce e indesejada de jovens e a violência por razões de gênero. Recordemos que o atual Governo Federal entende que essas propostas são parte de uma “ideologia de gênero” que ameaça a existência do que consideram a “família tradicional”. Por isso, prefere fechar os olhos às causas da violência sexual contra mulheres de diferentes idades e se nega a oferecer informações que permitiriam aos jovens entender a sexualidade para atuar com conhecimento e responsabilidade e, inclusive, permitiriam que pudessem identificar que certos atos configuram violência.
A “ajuda” do Governo Federal, decorrente do caso da menina de 10 anos, veio na forma da Portaria GM nº 2.282, de 27 de agosto, do Ministério de Saúde, que dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do SUS. Esta norma, que é discriminatória, tem a clara finalidade de tornar os serviços de saúde um apêndice da polícia; de revitimizar, estigmatizar e culpar as mulheres vítimas de violência sexual que escolhem fazer um aborto; e de, em definitiva, dificultar a realização de um aborto legal e seguro nos casos previstos por lei.
A nova portaria exige que os profissionais de saúde e os responsáveis pelo centro médico notifiquem às autoridades policiais sobre o recebimento de casos em que há indícios ou a confirmação de violência sexual (artigo 1º). Determina também que os profissionais “deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto” (artigo 1º, parágrafo único).
Esse tipo de previsão, que vincula a saúde com a segurança pública, desvirtua a finalidade que os centros médicos devem ter, especialmente nos casos em que mulheres sofreram violência sexual. A função desses profissionais não é produzir provas para instruir procedimentos de investigação penal. Há casos em que mulheres, por diferentes motivos, não querem denunciar a violência sexual sofrida, mas querem pôr fim, de forma legal, a uma gravidez indesejada que é fruto de violência. Essa determinação pode dissuadir algumas mulheres de realizar um abortamento seguro, em virtude da exigência de notificação à polícia, para finalizar a gravidez indesejada de forma insegura em algum lugar em que essa notificação não seja realizada.
As instituições de saúde devem ser lugares de acolhimento e cuidado, em que o bem-estar e a saúde física e mental das mulheres estejam no centro de toda a atenção médica, e que seus direitos e sua decisão livre e informada sejam respeitados.
A nova portaria também tem a finalidade de revitimizar as mulheres, de castigá-las e culpá-las pela violência sexual padecida e pelo aborto. Chama poderosamente a atenção que o artigo 8º disponha que, na segunda fase do procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez, “a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.” Qual é objetivo desta disposição? Possivelmente gerar culpa em uma mulher por querer finalizar uma gravidez indesejada, mesmo que esta seja o fruto de uma violência.
Outro ponto criticável da portaria é que dirige as informações que os profissionais da saúde devem transmitir às mulheres, aos aspectos negativos de um abortamento. Isso se vê claramente no Anexo V da portaria, que traz um modelo de termo de consentimento livre e esclarecido para casos de interrupção de gravidez resultante de estupro. O documento lista uma serie de riscos em diferentes momentos da gestação. Não há nenhuma referencia aos casos em que se aconselha o abortamento para preservar a saúde e a vida de uma mulher. Para tentar legitimar esse enfoque do termo, a portaria se refere, por exemplo, a documento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Contudo, é necessário destacar que o foco da OMS em seus documentos – como o documento a que se refere a portaria – é a saúde e o bem-estar físico e mental da mulher. Por uma questão ética, os profissionais da saúde devem informar de uma forma clara e de fácil compreensão todos os riscos existentes em um procedimento médico, mas também seus benefícios, e as diferentes alternativas possíveis, para que ela possa decidir de uma forma livre e bem informada. Isso também é válido para os casos de abortamento legal. O foco apenas nos riscos do procedimento tem a finalidade de gerar medo, não de informar.
A portaria determina também, no artigo 5º, que na terceira fase do procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez, a mulher seja advertida expressamente sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica e de aborto no Código Penal, e das consequências penais no caso de mentir sobre a violência sexual, e se exige que firme um termo de responsabilidade. Esta disposição não é uma novidade trazida pela Portaria GM nº 2.282, de 2020. Já estava presente na Portaria GM nº 1.508, de 2005, anterior ao documento ora em análise, o que revela que a normativa brasileira que disciplina a realização do aborto legal parte da desconfiança das mulheres vítimas de violência sexual.
Esta previsão é uma clara manifestação do estereotipo da mulher mentirosa, tão presente em casos de violência sexual, seja no âmbito da saúde como no sistema de justiça. Esse tipo de previsão, cujo conteúdo é discriminatório, é uma legitimação, por parte do Estado, de uma percepção negativa acerca de uma mulher que sofre violência sexual. Os efeitos prováveis desta previsão são a perpetuação desse estereotipo, a desconfiança do relato de violência da mulher, a justificação de atitudes e condutas que revitimizam as mulheres e a discriminação de mulheres pobres e negras, que são as principais usuárias do SUS.
A desconfiança que esse estereotipo provoca na relação entre os profissionais de saúde e a mulher dificulta ainda mais a atenção médica que deve ser oferecida às mulheres que sofrem violência sexual e ficam grávidas. O medo à desconfiança de seu relato de violência e que lhe atribuam culpa pelo sucedido, pode provocar que as mulheres não busquem uma atenção medica adequada e recorram a meios inseguros para abortar. Este fato, somado à falta de informação de muitas mulheres sobre seus direitos e os serviços médicos existentes em casos de violência, podem incrementar o número de abortos inseguros e provocar o aumento de morte materna e o agravamento da saúde física e mental das mulheres.
A “ajuda” do Governo Federal às mulheres que recorrem a um aborto legal e seguro fruto de violência sexual é uma expressão de sua misoginia. O aborto é um tema fundamental de sua guerra cultural e seu oportunismo político. O tratamento ideológico deste tema contribui para pôr em risco a vida das mulheres e para mantê-lo como um tabu no Brasil, onde são escassos os debates sérios e sossegados para discutir sobre o aborto. É importante recordar ao atual Governo que o aborto não é uma questão de “ajuda”, senão de direitos. As mulheres devem ser tratadas com respeito, como cidadãs iguais e devem receber uma atenção médica – e política também – que reconheçam o valor de suas vidas e suas decisões.
Professora no Instituto Universitario de Estudios de la Mujer, da Universidad Autónoma de Madrid – IUEM-UAM, doutoranda na Faculdade de Direito da Universitat de Barcelona – UB, pesquisadora.