Os países africanos promulgam leis contra o discurso de ódio na Internet com frequência crescente. Mas, na prática, as regras estipuladas servem sobretudo para censurar a liberdade de expressão, dizem os críticos.
Por António Cascais, do Dw
A Etiópia é um país marcado por conflitos étnicos, revoltas armadas e protestos violentos. A violência é muitas vezes alimentada por ódio, agitação e desinformação na Internet. Na semana passada, o parlamento de Adis Abeba tomou a iniciativa de promulgar uma lei para combater o discurso do ódio e a desinformação. Internautas e operadores de plataformas que violam as novas regras podem incorrer penas de prisão até aios três anos e multas de até 100 mil birr (2,9 mil euros).
A nova lei é alvo de críticas. Jornalistas, ativistas e bloguistas estão alarmados. A poucos meses das eleições gerais, marcadas para 29 de agosto, a lei abre ao governo e às forças de segurança a oportunidade de processar e punir vozes da oposição, sob pretexto de combater o ódio na rede, acusam.
Etiópia: Pretexto para silenciar a oposição?
“O Governo agora está em posição de impedir a praticamente todos os bloguistas e utentes de plataformas sociais que expressem as suas opiniões na rede. Desconfio muito desta nova lei”, diz Befeqadu Hailu, bloguista e ativista etíope. Só pela sua existência, a lei promove a autocensura, diz o chefe do Centro para o Fomento do Direito e da Democracia, uma vez que levará muitos jornalistas a renunciar publicar conteúdos e exercer o direito à liberdade de imprensa.
A Etiópia não é o único país que tem este género de leis. Na Europa elas já existem há muito tempo. Na Alemanha foi promulgada em 2018 o “Network Enforcement Act” (NetzDG). Esta e outras leis similares na Europa serviram de modelo para os governantes em Adis Abeba, diz Befeqadu Hailu.
O bloguista explica que uma lei que poder fazer sentido na Europa corre o risco de ter um impacto muito negativo na liberdade de imprensa em África. O que se deve principalmente à falta de segurança legal em países como a Etiópia: “Aqui não se aplica a separação de poderes. O poder judiciário funciona apenas de forma intermitente. Não há entidades a que os bloguistas ou jornalistas possam recorrer quando as autoridades ultrapassam os limites e aplicam leis originalmente dirigidas contra o ódio para travar a liberdade de imprensa e a liberdade de opinião”.
NetzDG é um sucesso de exportação alemã
No que toca a liberdade na Internet, a Etiópia sofre de má reputação, situando-se regularmente nas últimas posições dos rankings internacionais. O relatório “Freedom on the Net Report 2019” (Liberdade na Internet 2019), publicado anualmente pelo centro de investigação Freedom House, identifica a Etiópia como um país “sem liberdade na Internet”. Aqui, como na maioria dos outros países da África Subsaariana analisados no relatório – incluindo a Nigéria, Quénia e Uganda – os investigadores constatam até uma deterioração da situação em comparação com os anos anteriores.
É possível que justamente a lei alemã NetzDG tenha contribuído para o avanço da censura na rede virtual em África. Pelo menos é o que sugere um estudo do instituto dinamarquês para os direitos civis Justitia. O título do estudo: “O Muro de Berlim Digital: como a Alemanha criou inadvertidamente um protótipo para a censura global da internet”.
O Quénia é outro exemplo. O parlamento de Nairobi passou uma lei contra o ódio na internet em junho de 2017, logo após a primeira apresentação da NetzDG ao Parlamento alemão, diz Jacob Mchangama, advogado de origem comoriana e diretor da Justitia. “A lei alemã serviu claramente de modelo aos legisladores quenianos para elaboraram diretrizes destinadas a impedir a distribuição de mensagens políticas indesejáveis em massa e conteúdos nas plataformas sociais”, diz Mchangama.
Autocensura programada
É particularmente notável que as regras quenianas tenham sido promulgadas tão rapidamente, pouco depois da introdução da lei alemã, e que contenham praticamente os mesmos instrumentos e medidas para regular as plataformas de sociais, disse ainda o advogado em entrevista à DW.
Tal como a lei alemã, as diretrizes quenianas exigem que os provedores de serviços na Internet “apaguem, no espaço de 24 horas, conteúdos políticos indesejados e mensagens de ódio”. Os operadores de rede que não cumprirem a sua obrigação estão sujeitos a pesadas multas. O mesmo se passa na Alemanha, desde a introdução do NetzDG. Aqui as multas podem ir até aos 50 milhões de euros.
Não é preciso ser jurista ou visionário para adivinhar que, tanto na Europa como na África, multas tão elevadas intimidam as plataformas sociais que, em caso de dúvida, preferem eliminar conteúdos para não correr riscos, diz Mchangama.
Nigéria: Pena de morte
A Alemanha tem culpa pela censura da Internet em África? Não, diz Mchangama. Afinal de contas, a Alemanha não planeou fazer uma lei protótipo para a censura global da internet. E, muito provavelmente, mais cedo ou mais tarde a maioria dos regimes africanos teria elaborado as suas próprias leis para controlar a Internet – com ou sem a ajuda alemã.
O exemplo da Nigéria prova que há governos dispostos a promulgar leis ainda muito mais rigorosas e radicais. Na Nigéria os legisladores atualmente debatem dois projetos de lei que tocam a liberdade de opinião online. Ambos conferem às autoridades extensos poderes para encerrar a Internet, restringir o acesso às plataformas sociais e punir críticas ao governo com até três anos de prisão. Uma das propostas lei ainda vai mais longe e prevê a pena de morte para o discurso do ódio na Internet.