Ódio nas ruas, ódio nas redes: qual a conexão possível?

O ódio já causou diversos problemas para o mundo, mas não resolveu nenhum.
Maya Angelou

A tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. (…) Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade.
Theodor Adorno

Este artigo procura estabelecer algumas linhas de reflexão para escutar o contemporâneo, marcado por discursos de ódio e de intolerância. Tenta, de forma abreviada, apontar as raízes que semearam os frutos que possibilitaram que ataques verbais e físicos pudessem se converter, tristemente, em capital político. Defende a ideia de que a barbárie decorre de um abandono paulatino da grande política em escala global, nos termos postos por Antonio Gramsci, e que a centralidade do EU nos colocou em um labirinto difícil de sair, se não pensarmos na educação como categoria vital que nos possibilitaria debelar esse estado de coisas que põe em risco todas as projeções políticas que pensaram a civilização sob a perspectiva da humanidade que ser construir.

Por Rosane Borges via Guest Post para o Portal Geledés

Daquilo que nos ameaça
Não é preciso nenhum esforço de reportagem, como se diz no meio jornalístico, para se perceber que a suspensão da civilidade, a inabilidade para o diálogo, as discussões que movem-se ao sabor de escaramuças intermináveis tornaram-se marcas registradas dos dias que correm. Frente a este argumento, sérias objeções poderão ser levantadas, considerando que a insolência e a agressão verbal não são matéria-prima exclusivas do debate público de nossa era. Deslocando nosso olhar para outros tempos, veremos, por exemplo, que um longo cortejo de acusações diárias alimentou o jornalismo do século XIX. Lima Barreto, um flâneur de ocasião, um leitor da vida social na aurora do século XX, não nos deixa mentir. Em Recordações do escrivão Isaias Caminha, ele diz: “foi sempre coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens que se abraçavam efusivamente, com as maiores mostras de amigos, vinham ao jornal denunciar-se uns aos outros. Nisso é que se alicerçou o O Globo; foi nessa divisão infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição de todos os laços morais(…).”
Mas há algo, como veremos, que separa e distingue os ataques de ontem dos de hoje. Permaneçamos no encalço do nosso ponto de partida. O que fazer, o que pensar, como reagir, que rumo tomar diante de tanto ódio e virulência – questionamos entre atônitos e impotentes? O filósofo Gilles Deleuze já teria dito que se é obrigado a pensar em tempos difíceis, e “que só se pensa porque se é forçado”. E ninguém põe em dúvida que estamos vivendo tempos difíceis.

Para Deleuze, quando forças do ambiente em que vivemos formam novas combinações, desenhando diferentes cenários em relação aos que conhecíamos e nos quais transitávamos é aí que o mal-estar se instala e provoca a reflexão. Fora do enquadramento habitual do mundo em curso, é preciso, tal como fotógrafas(os), obter foco adequado para restabelecer a paisagem em nova moldura ou até mesmo constituir uma nova. O pensamento, para o autor, está a serviço da vida em sua potência criadora.

Na busca de novos mapas que nos guiem em nossa jornada, arriscamos alguns diagnósticos. Ouvimos aqui e ali, em padarias, academias de ginástica, estações de metrô, consultórios médicos e em nossas próprias casas avaliações que procuram compreender a dinâmica dos fatores que se retroalimentam e oferecem o combustível para que o espaço público esteja em estado abrasivo permanente.

Este artigo, uma tentativa encontrar um foco, faz uso de algumas lentes para examinar, parcialmente, o cartão postal de nossos tempos. Ao modo de fotógrafas, procuramos captar momentos parciais de um fenômeno que deita raízes em diferentes tempos e lugares. São lances de reflexão, um esforço, uma torção do pensamento que só podem ser vistos como uma escrita que opera sob rasura, expressão herdada do teórico jamaicano, Stuart Hall, um dos fundadores dos estudos culturais, para quem a rasura possui inegável importância política.

Lance 1: Da grande política à pequena política
No grande quadro, as avaliações mais recorrentes sobre o estado da arte (em que o ódio e a indiferença compõem um cenário nebuloso) apontam que as questões que envolvem a coletividade, a grande política cederam, já faz tempo, para a pequena política. Tal transição, que ocorreu em escala planetária, seria fruto de mudanças nas relações de produção infraestruturais, abrindo espaço para toda sorte de rearranjos institucionais, de novas acomodações das subjetividades, de outros códigos sociais. Dizer isso, no entanto, não é o suficiente para alcançarmos as particularidades desses “tempos difíceis”. Sigamos, portanto.

Como se sabe, a ciência e a técnica “enformaram” a totalidade da vida. Nesse ambiente, instalou-se um irrevogável descompasso, um paradoxo. Pensadoras e pensadores de diversas latitudes, gestoras(es) do social e ativistas das diversas procedências ajuízam que não estamos sabendo “criar uma política, uma moral, um conjunto de ideias que estejam em harmonia com os modos de vida que nós mesmos concebemos” (Novaes, 2015). Precisamos, dizem elas(es), de um novo contrato, de onde emirja uma nova política, novas formas morais, novas mentalidades, novas sensibilidades …
Insiste-se, com frequência, que, no contexto de mudança cultural contemporânea, o mundo se encontra desbussolado. As âncoras que faziam laço social se enfraquecem, se dilatam, até não fazerem mais sentido. O desencantamento do mundo (disso já se ocupou grande parte da filosofia e das ciências sociais) provocou a erosão das grandes narrativas que, apoiadas na noção de progresso, formataram as trilhas da Grande Promessa que funda o projeto moderno: a destituição de Deus e assunção do homem, ao centro, no novo receituário da crença universal.

A ciência iluminista é a fiadora desse intento, acenando com feitos até então inalcançáveis, responsáveis por garantir a felicidade e o bem-estar de todos. Fazendo apelo à expressão da moda: só que não! A promessa não foi cumprida conforme o figurino iluminista e logo se anunciou a decomposição da figura humana, o que provocou desarranjos que nos levaram a flertar, e mais do que isso, a pactuar com a barbárie. Desidratada, sem musculatura para levar adiante os anseios dos “novos sujeitos”, a propaganda iluminista reduziu-se à eficiência técnica, garantindo mais e mais poderio ao capital. As duas guerras mundiais são os exemplos mais eloquentes dessa desilusão: definiram o século XX, ofertando à humanidade uma representação de si mesma tida como superada pelo ideário edulcorado da vida moderna. Desafortunadamente, tivemos que encarar o fato de que a barbárie não se encontra nos dejetos da história humana, depositados seguramente em um tempo e lugar remotos, mas constitui uma presença altissonante que torna odioso o rosto do outro nos nossos tempos, no aqui e agora. Desdobrando a epígrafe do filósofo Theodor Adorno, que principia este artigo junto com a epígrafe da feminista negra, intelectual e poeta, Maya Angelou, explicitamos o conceito de barbárie que fundamenta as considerações aqui tecidas:

(…) Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontram atrasadas de um modo particularmente disforme em relação a sua própria civilização e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza (….) (Adorno, 1967).

Mas onde mora o perigo que tanto preocupou Adorno e vem nos tirando o sono? Por que ele é uma constante em nossas vidas, nos projetos políticos que se desenham no horizonte da história?
As perguntas comportam várias possibilidades de resposta. Aqui irei me ater à aventura da modernidade, pois considero que, onde cintilou a esperança de um mundo novo, foi onde também começaram a ruir os pilares de uma nova era, supostamente emancipada pela razão, pela ciência e pela técnica.

Lance 2: A promessa nunca cumprida – de sujeitos a indivíduos
Das grandes promessas (um mundo em que a ciência e a técnica pudessem assegurar o bem-estar de todos, associada à razoabilidade humana cujo papel seria orquestrar as mudanças com vistas à emancipação) às pequenas promessas não cumpridas (fixemo-nos em exemplos domésticos: a retração das políticas de inclusão via consumo nos governos petistas, mudanças contingenciais no curso das conquistas de frações da população brasileira, que passam a querer mais num cenário da política nacional-desenvolvimentista em patente dificuldade) acumulam-se decepções, estados disfóricos, sombrios.

Impiedosamente, alguém tem que ser culpado (e não responsabilizado). Atiramos pedras reais e metafóricas no governo federal de plantão a quem delegamos o papel de tudo resolver, inclusive questões que são da jurisprudência e alcance de governos estaduais e municipais. Vociferamos, xingamos. Atribuímos à presidenta o dolo pelos malogros dos quais somos ou supomos ser vítimas. Insatisfeitos, proferimos insultos sexistas, destituidores, impronunciáveis, impublicáveis… Em pleno Rock in Rio, a quem culpamos quando inesperadamente ocorre uma pane elétrica no tão esperado show da banda Metallica? Prova da insanidade e da má-fé (para não descermos na qualificação) que acomete porções significativas do tecido social brasileiro.

O escritor Octavio Paz nos fala de uma desorientação contemporânea, em que há um esvaziamento do futuro, fruto da falta de crenças persuasivas capazes de fornecer referências para pensarmos no presente e ainda mais no futuro. Do campo da arte auscultamos comentários que dizem que no século XX os espelhos voaram em pedaços, negando ao Eu qualquer abrigo seguro, o que se acentuou no XXI (Freud alertou: “o EU não é mais senhor em sua própria casa”). Uma reação perversa dessa ferida narcísica é sentida dramaticamente na saga da imigração africana e árabe nesses últimos meses. Como se fosse uma partida de futebol, estabelecemos uma linha divisória entre nós e eles para o caso em questão, bradamos, reclamamos, fazemos uso de comentários que rebaixam o estatuto do outro. A capa de chauvinistas raivosos não nos constrange a tal ponto de tentarmos a morte real desse outro que nos ameaça em “nossa própria casa”. (alguns haitianos sofreram atentado em São Paulo).

Recuperando Deleuze, nesses momentos impõe-se correção de rota. Mas é exatamente nas escolhas e decisões destinadas a favorecer as mudanças desejadas que mora o perigo. Tentando escapar do vácuo que as promessas da modernidade instalaram, decidimos apostar no indivíduo. Na ausência da grande política, fomos levados a crer que, enquanto indivíduos, desprovidos de um projeto coletivo, poderíamos nos emancipar e construir as bases para um mundo melhor. O neoliberalismo, numa lufada adicional de oxigênio, reforçou essa ideia. A era pós-industrial, a era dos serviços, do trabalho imaterial, em que o conhecimento seria a base de tudo, insistiu na propaganda também enganosa de que somos empreendedores de nós mesmos, autônomos e independentes. O conto da carochinha teve aderência imediata, mas já rolou ladeira abaixo.

A fragmentação da experiência e a dissolução do sujeito parecem ser o sintoma mais espesso do mal-estar generalizado. Para Marc Augé, o grande paradoxo, a nossa grande ironia é que em tempos de dissolução do sujeito (substituímos o sujeito pelo indivíduo), vivemos “um excesso de ego”. A perda da crença da “salvação” via coletividade nos motivou a investir no ideário de que somos seres capazes de resolver problemas, sem ter que enfrentar a Política em sua complexidade. Saímos por aí a decretar descrença nas ações coletivas, em nos resignar no hedonismo, na busca de felicidade e realização a partir das nossas próprias “competências”. Eis um cenário propício capaz de articular o discurso do ódio.

Aprendemos, a duras penas, que a frágil e violenta condição humana por si só não possui estatura para oferecer as bases da emancipação social. Até onde a tradição política nos permite enxergar, deve-se desconfiar, para dizer o mínimo, de uma sociedade que abre mão de pensar coletivamente. Em vídeo que correu nas redes sociais recentemente, a escritora senegalesa Fatou Diome é certeira em suas avaliações sobre o problema da imigração. Vivendo em de Paris há 13 anos, Diome dispara numa entrevista televisiva: “Chega de hipocrisia, vamos crescer juntos ou afundar juntos”. Como se costuma dizer nas redes sociais, Fatou Diome lacrou! Sem pensar o coletivo coletivamente fracassamos, pois todo o projeto de emancipação humana encontra-se nesse processo doloroso de nos pensarmos mutuamente. Nos discursos de ódio, esse outro é sempre ameaça (os imigrantes serão a ruína inescapável da Europa [mas não esqueçamos que Achilie Mbembe chamou atenção para o fato de que a Europa não é mais o centro do mundo]; os haitianos são um indício de desagregação nas relações de trabalho no Brasil; os árabes e africanos iriam provocar sérios riscos para a governança global, e por aí vai). Ameaças, gritam ruidosamente alguns, se combate. E o combate preenche o mundo das trocas comunicacionais em voga, redes sociais à frente.

Lance 3: a tecnologia como sintoma
A odiolândia, como as redes sociais vêm sendo chamadas, principalmente o facebook (FB), é um território em que podemos sentir o império do EU, o excesso de ego. E sob diversos aspectos. Destaco, por brevidade, dois que se combinam e se interconectam: 1) o predomínio da opinião e 2) o fluxo ininterrupto de informações sobre a vida privada.

Opinião em excesso, ao invés de reflexão, é um bom termômetro para se pensar nesse eu consciente (tão discutido pela psicanálise) que se acha senhor absoluto do que diz, emitindo de maneira vertiginosa certezas graníticas. Geralmente, na terra do FB falta mediação pela reflexão, pela informação abalizada, pela dúvida. E quando falo em reflexão, não estou me referindo à tarefa acadêmica, ao exercício intelectual stricto sensu, mas à experiência do pensamento que é capaz de operar as mudanças.

No que diz respeito ao segundo aspecto, redireciono um trecho de um artigo que escrevi para a Revista da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as), a ser publicado no mês que vem, em outubro: “Ligados em um circuito de contatos permanentemente ativado, mergulhamos profundamente no oceano de informações da sociedade transparente, acrescentando ao gigantesco banco de dados imagens particulares, que atendem graciosamente ao culto personalista, à visibilidade incessante. Tornar-se opaco, num mundo como esse, é decretar a própria morte, reza a cartilha da hiperexposição. As redes sociais ilustram essa sede por mais e mais visibilidade: somos levados a publicar uma enxurrada de informações na plataforma que não cessa, nem dorme, onde tudo jorra em fluxo contínuo. Nesse palco em que as cortinas não se fecham, falamos prodigiosamente das nossas vidas privadas: à nossa frente desfilam diários pessoais, declarações amorosas, discursos enviesados endereçados a antagonistas, exposição do nosso estado de humor, psicologia ingênua e barata sobre a vida em suas múltipas dimensões…” (Borges, Rosane. Revista da ABPN, outubro/2015).

Segundo o pensador Muniz Sodré, “a selfie é só um pequeno índice dessa possibilidade infinita de reprodução no espelho em que, a pretexto de uma conexão com o outro, o indivíduo desfruta de si mesmo como um átomo isolado numa paisagem social de seres nômades ou dispersos”. Ainda segundo ele, “vale atentar para a espetacularização ou gozo de estar-no-mundo em que o sujeito parece existir apenas quando reproduzido no espelho, à espera de uma conexão”. Frise-se: o espelho em que o indivíduo se vê não comporta a projeção do outro. Há uma perversa subversão do princípio de identificação, desenhado pela psicanálise, em que o EU se faz no OUTRO.

Ouvimos, com certa assiduidade, que o ódio e a intolerância que escorre do ambiente telânico (parte expressiva das nossas vidas se tece frentes às telas – de computadores, celulares, TV, tablets) só é possível porque o(a) agressor(a) acredita que a Internet é um espaço sem regulação, terra sem-lei e que, por ser protegido pela distância física, vitupera – o que nem sempre é possível em diálogo face a face. Falta coragem. Insisto que esse dado deve ser lido como o efeito de um fenômeno que se enraíza em questões mais fundas. As agressões nos espaços materiais e digitais não se movem em compassos e tempos distintos. Para além da covardia e da performance do nosso contexto comunicacional, onde podemos ser autoras(es) de uma quantidade colossal de textos (já somos chamadas[os] de prossumer, um misto de produtores e consumidores de informação), as diversas realidades que experimentamos respondem ao princípio do excesso de ego, de uma sociedade que tenta desesperadamente equacionar seus problemas sem espelhamento do outro, sem recorrer à grande política, onde vozes individuais, muitas vezes desprovidas de densidade, ganham amplitude para preencher o espaço público cada vez mais desértico. Não é à toa que os termos celebridade e liderança política tendem a se fundir em tempos de supremacia do EU.

Ora, há muito sabemos que o narcisista não conhece alteridade. Encapsulado nas suas próprias referências, carrega a seguinte certeza: tudo que me leva para além de mim me faz sofrer, porque me leva a pensar, a me firmar como um sujeito relacional. O narcisista labora para criar cascas inquebrantáveis. E quando ela se quebra ele imediatamente vocifera, rosna, ofende, grita, sai dando canelada.

O que isso tem, afinal, com a destilação do ódio nos nossos dias? Tudo e um pouco mais. O reconhecimento do outro não é meramente uma questão de cortesia, como já observou as(os) entendidas(os) no assunto. Trata-se de uma operação fundamental para que sejamos plenos, afinal o Eu é um Outro. O que fazemos com o fragmento poético de Gonzaguinha que diz “o homem é lição de outros homens”, num tempo que não ouvimos, nos mantemos na casca, na bolha, achando que dali gerenciamos as nossas vidas e o mundo?

Na escuta do contemporâneo, sentimos, pressentimos, como os hipocondríacos, que coisas estão por vir. E nada nos autoriza a avaliá-las como positivas. Esta sombra pesada, este perigo do qual nos falou Adorno nos força a tirar lições do passado, pois, como disse Maya Angelou, o ódio, como categoria política, não nos leva a lugar nenhum, não oferece nenhum recurso para a solução dos nossos problemas. Estacionar nesse expediente pode nos levar para uma situação (ainda mais) limite em que o outro, reputado como indesejável, como escória, terá de se insurgir (ainda mais também ) de forma orquestrada em escala mundial. A propósito, o deputado federal Jair Bolsonaro em entrevista recente se referiu aos imigrantes no Brasil como escória do mundo. Indagado sobre o assunto, o “nobre” deputado responde do alto de seu “compromisso com a causa coletiva”: “Não sei qual é a adesão dos comandantes, mas, caso venham reduzir o efetivo [das Forças Armadas] é menos gente nas ruas para fazer frente aos marginais do MST, dos haitianos, senegaleses, bolivianos e tudo que é escória do mundo que, agora, está chegando os sírios também. A escória do mundo está chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problema demais para resolver”, declarou.
Não bastasse isso, ficamos sabendo que outros “nobres” indivíduos estão se organizando para fazer frente às ditas gangues que promovem roubos e arrastões no Rio (como sabemos, há controvérsias no enredo oficial). Um desses grupos, chamado de Justiceiros de Copacabana, é composto por lutadores de artes marciais. Eles argumentam que já que o Estado não cumpre sua parte na proteção dos “cidadãos de bem”, estão se organizando para garantir essa proteção por conta própria, numa comprovação mais que explícita do poder ilusório dos indivíduos, uma espécie de justiça vicária, em detrimento da ação do Estado. Ao invés de pensarmos no princípio de responsabilidade, optamos pelo sentimento da culpa, ao invés de adotarmos o coletivo como um princípio absoluto para a política, atalhamos pelos caminhos tortuosos das decisões individuais, ao invés de fincarmos pé em nome da justiça, preferimos o triunfo da vingança.

Lance 4: É preciso (re)organizar a história nos momentos de perigo
À medida que este artigo se aproxima do “fim” (há que se colocar um ponto de suspensão e não final) o poema Tempo, de Drummond de Andrade, repercute sonoramente dentro de mim: “Esse tempo de partido/ tempo de homens partidos. Visito os fatos, não te encontro. Calo-me, espero, decifro/ As coisas talvez melhorem.”

Provavelmente, é esse o nosso tempo que se desenrola no plural. Tempos fraturados, partidos, que se oferecem ao deciframento, ainda que sob rasura. Não é mera coincidência que o pensador italiano Giorgio Agamben tenha a mesma impressão do contemporâneo que teve Drummond. Segundo Agamben, “o dorso do contemporâneo está fraturado e nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura”. Toda fratura requer reabilitação, sem a qual tudo se atrofia, se desfaz e se esfarela. No meu hábito diário de saber o que está acontecendo no mundo por meio da leitura de jornais, li, por esses dias, uma entrevista com Olivier Dubois, diretor de espetáculo de dança francês, chamado Tragédie, em cartaz em São Paulo. Na entrevista, Dubois toca no coração desse tempo odioso, de forma ao mesmo tempo bonita, poética, mas também desconcertante e preocupante. Diz ele: “o simples fato de sermos humanos não nos torna humanos e aí está nossa tragédia. A humanidade exige um engajamento pessoal constante, ela é esse jardim em que é preciso labutar sem cessar para não perder território”. Em tempo: no espetáculo, os bailarinos se apresentam nus, uma forma de exibir incômodo da realidade.

Não tenhamos dúvida: a perda do território do qual fala o diretor leva de roldão a cota de humanidade que nos faz humanos. Os discursos do ódio e da intolerância instalam-se numa fronteira perigosíssima que sinaliza o quanto estamos abrindo mão dessa cota. Assim como os bailarinos do espetáculo, nos desnudemos e pensemos que a educação, como disse Adorno, é o recurso que nos possibilita desbarbarizar e acreditar que “talvez as coisas melhorem”. Labutemos!

PS1: Dedico este texto a Dalva Maria Soares, uma pesquisadora, uma doutoranda que nos oferta antídotos poderosos para a barbárie, com doses homeopáticas de poesia e beleza. Fechando esse texto, li na sua interessante linha do tempo: “só a delicadeza nos salva nas horas brutas.”
PS2: Esse texto reclama por desdobramentos que não cabem numa publicação online. Ele será expandido e comporá a organização de um livro a ser publicado em dezembro deste ano.

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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