África do Sul enfrenta dilemas da militarização prestes a completar um mês de lockdow

A busca por achatar a curva de casos de coronavírus na África do Sul tem um motivo: o país tem um sistema de saúde público precário e que não suportaria uma enxurrada de doentes - Foto: Anadolu Agency

Apesar da rigidez, a classe empresarial sul-africana não está fazendo passeatas para pressionar pela abertura do país

Por Waleiska Fernandes, do Brasil de Fato

A busca por achatar a curva de casos de coronavírus na África do Sul tem um motivo: o país tem um sistema de saúde público precário e que não suportaria uma enxurrada de doentes – Foto: Anadolu Agency

Na semana passada, enquanto no Brasil havia corrida por ovos de Páscoa nos supermercados, na África do Sul, o artigo nem à venda estava.

Isso porque o governo sul-africano determinou que tudo fosse recolhido dos mercados desde a última semana de março, quando foi decretado o estado de fechamento do país (lockdown) para a contenção da propagação do coronavírus.

Mas o que os ovos de Páscoa têm a ver com a pandemia? Nada e tudo. O ovo de Páscoa propriamente não, mas especialistas apontam que, quanto maior a oferta do que fazer e do que consumir, mais as pessoas têm pretexto para sair de casa aumentando as possibilidades de proliferação do vírus.

Partindo dessa premissa, desde o início do lockdown na África do Sul, no dia 27 do mês passado, a venda produtos não essenciais foi suspensa no país. Só está liberada a comercialização de itens como remédio, combustível, comida e produtos de limpeza.

Nos supermercados, apenas os corredores que dão acesso a essas coisas estão liberados. Por causa do lockdown, o país também está com as fronteiras e praias fechadas. Inicialmente, o decreto valeria até a última quinta-feira (16), mas já foi prorrogado para até o final de abril.

Comerciantes que tentam burlar essa medida podem ser presos. O dono de uma distribuidora de bebida na Cidade do Cabo, por exemplo, foi detido e teve a licença de seu comércio cassada depois que foi flagrado em funcionamento no lockdown.

Nem mesmo os integrantes do governo escapam de punição caso infrinjam a rígida rotina que está sendo imposta no combate ao novo coronavírus. Na semana passada, o presidente da África do Sul suspendeu por dois meses a ministra de Comunicações e Tecnologias Digitais, Stella Ndabeni-Abrahams, por desobediência ao decreto de isolamento social, após o vazamento de fotos dela em um jantar festivo na casa de um amigo.

Cyril Ramaphosa declarou que a atitude da ministra desrespeita todo o povo sul-africano que está se sacrificando em total isolamento em casa e que ninguém de seu governo pode agir para desencorajar a população a seguir fazendo a sua parte no combate à pandemia.

O presidente também orientou que ela fizesse um pedido de desculpas à nação. A licença especial de Stella Ndabeni-Abrahams será sem remuneração e o adjunto assumirá a pasta durante esse tempo.

Apesar de toda essa rigidez, a classe empresarial sul-africana não está fazendo passeata nas ruas para pressionar o presidente a abrir o país, como se vê no Brasil. Ao contrário. Nas redes sociais, empresas associam sua marca com o #StayHome e fazem peças de comunicação valorizando sentimentos de união, solidariedade e de que a África do Sul deve ser um exemplo no continente.

Antes do lockdown iniciar, o governo já havia fechado por 30 dias todas as escolas, universidades e espaços públicos de turismo, lazer e cultura. Essas restrições iniciaram em 18 de março.

O dilema do lockdown militarizado

Para garantir o cumprimento do isolamento, o governo sul-africano colocou polícia e exército nas ruas, esbarrando em outro sério problema do país: a cultura violenta da polícia, sobretudo com a população pobre e negra (que até 25 anos atrás também não podia circular livremente pelo país, por causa do Apartheid).

É justamente essa parcela da população quem tem mais dificuldade de cumprir o isolamento total imposto pelo governo e há três grandes razões para isso: a busca por água, já que muitos barros pobres enfrentam problemas de saneamento; a busca por comida, pois muita gente não dispõe de recursos financeiros para abastecer suas casas por muitos dias e precisa sair com muito mais frequência atrás de seu sustento; ou para o recebimento de donativos e dinheiro de programas governamentais. A imprensa local cotidianamente mostra enormes filas nos locais de distribuição.

Desde o início do lockdown, há inúmeras denúncias de violência da polícia nas áreas mais pobres do país. Reportagem da agência de notícias alemã Deutsche Welle (DW) traz o relato de várias pessoas que já foram vítimas da truculência policial por causa do isolamento.

“É traumatizante. Nunca fui espancada desta maneira. Fiquei com tantas dores durante três dias que nem consegui ir à farmácia. Se nem a polícia nos pode ajudar, em quem podemos confiar?”, relatou uma sul-africana da Cidade do Cabo que foi agredida pelas forças de segurança porque estava na rua de sua casa sem estar fazendo algo considerado essencial.

Outros países africanos que adotaram o lockdown militarizado, como a Angola, também registram crescimento das denúncias de agressões policiais para controlar a circulação de pessoas.  A preocupação é que nos próximos dias a tensão aumente e a violência policial seja ainda mais frequente nas áreas mais pobres desses países.

Governos africanos apostam tudo na prevenção

A busca por achatar a curva de casos de coronavírus na África do Sul tem um motivo: o país tem um sistema de saúde público precário e que não suportaria uma enxurrada de doentes.

Até esta terça-feira (21), o país registra 3.465  casos confirmados de covid-19, com 58 mortes registradas. O Egito (3.490) é hoje o país africano com o maior número de infectados, seguido por África do Sul (3.465), Marrocos (3.209) , Argélia (2.811), e Camarões (1.163). Em boa parte dos países do continente, a doença ainda registra poucos casos, como Cabo Verde (63), Angola (24) e Sutão, Barundi e  Mauritânia, onde o número de infectados não chega a 10 pessoas.

Mesmo assim, a situação africana preocupa a Organização Mundial da Saúde (OMS). Se a África do Sul, que tem uma das melhores economias da região, não tem estrutura para lidar com a covid-19, países mais devastados pela pobreza têm menos ainda.

Serra Leoa, por exemplo, tem 7,5 milhões de habitantes e apenas 18 respiradores artificiais para usar em pacientes que precisarem de UTI em decorrência da doença. Na República Centro-Africana, são três respiradores para uma população de 5 milhões de pessoas.

Dos 54 países africanos, 25 estão com fronteiras fechadas. O coronavírus está presente em 50 deles. Diante da falta de estrutura sanitária, da enorme quantidade de pessoas vivendo em moradias precárias e da falta de uma rede de saúde capaz de atender toda a população, a pandemia poderá fazer uma enorme tragédia na região. Mais do que em qualquer outra parte do planeta.

*Texto publicado no site do coletivo Terra Sem Males, parceiro do Diário da Pandemia na Periferia do NPC.

 

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