Agenda da defesa das instituições democráticas

A omissão pode custar caro, ainda mais quando a radicalização política aponta para o risco de novas insurgências

FONTEPor Oscar Vilhena Vieira, da Folha de S. Paulo
Oscar Vilhena Vieira, professor e cientista político (Foto: Jardiel Carvalho /Folhapress)

Testemunhar militares do GSI, que deveriam cuidar da segurança do presidente, ciceroneando golpistas na sede do Executivo dá uma clara dimensão dos desafios em qualificar nosso sistema de defesa da democracia. Passados 35 anos da nova ordem constitucional, corpos e práticas autoritárias permanecem insepultas em órgãos de inteligência e segurança.

O desafio é ainda maior quando constatamos que dispositivos de defesa da democracia e dos direitos fundamentais, como o impeachment, não foram acionados, mesmo em face das graves e sucessivas ofensas aos poderes constituídos. Da mesma forma, o Ministério Público, a quem foi atribuída a função expressa de “defesa da ordem jurídica” e “do regime democrático” (artigo 127 da CF), desapareceu. Essas omissões deixam claro que precisamos corrigir gargalos em nosso sistema de proteção da democracia.

Da agenda de reformas deveriam constar, necessariamente, os seguintes tópicos.

Rever a atribuição monocrática do presidente da Câmara dos Deputados, no caso de apreciação de pedido de impeachment, assim como do procurador-geral da República, nos crimes comuns praticados pelo presidente da República e demais autoridades com foro no Supremo Tribunal Federal. Como costuma dizer o ex-ministro Celso de Mello, numa República não pode haver espaços de poder indevassável a controle. E quando falamos em poder de expressar a última palavra, essa palavra deve ser sempre proferida por um colegiado.

Promover uma cuidadosa revisão dos vetos impostos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, aprovada em 2021, sem a qual não teríamos o necessário arcabouço penal para responsabilizar todos aqueles que se envolveram na intentona de 8 de janeiro e nos demais atos antidemocráticos. Especial atenção merece o veto ao artigo 359-O, que estabelecia como crime “promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos falsos e inverídicos, que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”; assim como o veto ao artigo 359-Q, que justamente estabelecia a possibilidade de uma ação penal subsidiária, de “iniciativa de partido político com representação no Congresso Nacional, se o Ministério Público não atuar no prazo…”, em casos de crimes contra o funcionamento das instituições democráticas. Por fim, é necessário urgentemente profissionalizar a Abin e o GSI, expurgando agentes desleais à Constituição.

São questões difíceis, como aquelas inseridas na discussão sobre a responsabilização das redes por atos antidemocráticos ou discursos de ódio que impulsionam. Não podem ficar adormecidas, até que a próxima crise nos engolfe. A omissão poderá custar muito caro, ainda mais quando a radicalização política em que imergimos aponta para os riscos de novas insurgências e insatisfações com os resultados das urnas.

Fui aluno de Boris Fausto no Departamento de Ciência Política da USP, no início dos anos 1990. Pela sua lente incisiva, irônica e cortante fui apresentado aos clássicos do pensamento político brasileiro. E por isso serei eternamente seu devedor. Muito mais tarde, à mesa de meus queridos amigos Malak e Pedro Paulo Poppovic, que dão verdadeiro significado à palavra amizade, conheci um Boris doce, mas que nunca terminava uma frase sem uma pequena ironia. Às vezes me ligava para discutir um tema jurídico que apareceria em suas colunas na Folha. No dia seguinte discordava gentil e publicamente de minhas ideias. A perda só não é maior porque nos legou uma grande obra intelectual e uma pequena, mas fabulosa, prole.

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