Ainda Estamos Vivas: A trajetória Política de Ana Dias

Diego Jandira (Arquivo Pessoal).
Ana Maria do Carmo Silva, a Ana Dias. (Foto: Memorial da Resistência de São Paulo).

Ana Maria do Carmo Silva, mais conhecida como Ana Dias, nasceu em Pitangueiras, interior do Estado de São Paulo, a 16 de Janeiro de 1943. Como muitas outras mulheres de sua geração, viu com esperanças um país que se entusiasmava com o desenvolvimento econômico crescente na década de 1950, mas que teve uma interrupção brusca com o golpe militar em 1964. Vinda da roça onde trabalhava e morava com a família para viver na zona sul da capital paulistana, Ana veria paulatinamente seu destino transformar-se junto às próprias mudanças do país.  

A luta de Ana Dias soma-se à batalha de diversas mulheres negras que foram sistematicamente escondidas da história das mobilizações sociais contra a ditadura instalada no país de 1964 a 1985. O apagamento de personagens tão fundamentais para a democratização do Brasil não se faz apenas pela ocultação do nome – ou dos corpos, uma prática basilar da ditadura –, mas também escondendo essas mulheres atrás dos discursos e das memórias de seus maridos, na “espera” da justiça que tarda a chegar em respeito a seus entes mortos ou desaparecidos. 

No dia 30 de Outubro de 1979, zona sul de São Paulo, durante uma manifestação pacífica de greve de operários em frente a uma fábrica no município de santo amaro, o metalúrgico Santo Dias da Silva foi alvejado com tiros nas costas pela polícia militar, que dessa maneira tentava conter a aglomeração que se formava no local. Santo Dias era um líder reconhecido na organização dos trabalhadores por condições profissionais, o que o levou após a morte a ser homenageado pela classe operária como o “Santo” da causa operária, recebendo até hoje manifestações e pedidos de justiça no local onde foi assassinado. Santo era marido e companheiro de luta de Ana Dias.

A trajetória de militância de Ana não começou após o crime cometido contra Santo Dias e sua família. Ainda em Pitangueiras, trabalhando em fazendas onde desde muito cedo pôde entrar em contato e perceber a condição miserável pelas quais passavam os trabalhadores do campo das décadas de 1940 e 1950, viu as consequências do analfabetismo, da ausência de higiene e de saúde, da falta de alimento para a mão de obra de grandes fazendas produtoras de alimento, e mesmo tendo estudado até o 4° ano primário da época, a experiência sentida na pele desenvolveu em Ana o senso de mudança social que mantém até os dias de hoje.

Nos anos 1970 uniu forças ao Clube das Mães, movimento desencadeado pelas bordadeiras que se reuniam nas paróquias das igrejas da zona sul e trocavam entre si ideias e informações de toda a negligência que o governo do período dispensava à periferia. Dessa forma, conseguiram articular diversas manifestações, contribuindo assim para a desestabilização da imagem falsa de democracia que o regime insistia em sustentar. Cabe ainda mencionar sua articulação junto ao Movimento Custo de Vida, que diante do aumento dos preços dos itens básicos à manutenção da vida nas periferias, mulheres foram às ruas exigindo a baixa dos preços dos alimentos e da violência que recaia sobre a gente pobre e preta. Em 1978, o movimento levou à Praça da Sé mais de 20 mil manifestantes, mostrando ao país inteiro as iniquidades do sistema e o quanto mulheres pretas e periféricas eram capazes de se organizarem por si mesmas e assumirem a linha de frente da luta pela democracia e o direito de existir.  

A batalha que Ana Dias trava diariamente é a de que mais e mais pessoas conheçam as histórias de luta das mulheres periféricas que foram personagens fundamentais na construção da democracia que assistimos ser ameaçada hoje. Pouco lembrada, seu legado une-se ao dos principais nomes que desafiaram a ditadura militar em seus períodos mais cruéis – uma ditadura que de certa maneira, continua até hoje por outros (ou pelos mesmos) meios, e o movimento das Mães de Maio, tendo a frente Débora Maria da Silva, está aí para confirmar e reagir a esse fato.

Movimentos autoproclamados como progressistas encenam o “acerto de contas” com a ditadura militar relegando a presença negra a segundo plano, ou a plano nenhum, como se não tivessem feito parte desse momento da história. Ana Dias, por sua vez, traz as marcas e a cor da pele de maior parte da população brasileira. Seu rosto é semelhante à maioria dos rostos de diversas mães pretas em quaisquer cantos do Brasil. Talvez seja por isso que, em um país racista, seu rosto não esteja estampado nos diversos meios de comunicação que reivindicam justiça aos crimes sem solução da ditadura. Não recordarmos da trajetória de pessoas negras como Ana Dias, é um meio de fazer prevalecer a política ditatorial do esquecimento. Ana Dias é memória do Brasil. Insistamos lembrar!


Diego Jandira

Sou pesquisador e músico. Trabalho os temas de relaçoes raciais, musica e cultura brasileira. Sou Graduado pela Unifesp Guarulhos em Ciências Sociais, e atualmente escrevo regularmente para o Instituto Iree e Le Mnde Brasil.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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